077] Em 1993-94: novas ideias a abrir caminho na «José Afonso»

Memórias


A Área Escola foi uma das novidades introduzidas pela reforma curricular, pelo que, em 1992-93, todas as turmas do 7º ano da «José Afonso» estiveram nela envolvidas. O tema geral então escolhido foi «Seixal – Passado, Presente e Futuro».
Em 1993-94 a reforma chegou também ao 8º e ao 10º ano, alargando a mais de metade das turmas da escola o empenhamento nesta nova área curricular. Desta vez o tema geral adoptado foi «As Viagens».
As minhas turmas optaram pela «Viagem ao mundo da marginalidade» (8º C), pelos «Riscos e mistérios do desconhecido» (8º D) e pelo «Turismo» (8º G). Tal como nestas, entre as vinte e sete outras turmas envolvidas nesta aventura curricular não faltou diversidade temática:
* as viagens das oito turmas do 7º ano tiveram como destino o «desporto», o «espaço», a «Europa» (“com a Escola na mochila”), a «nossa terra», o «passado» (numa outra turma os «Descobrimentos»), a «terra dos nossos pais» e, numa última, fosse para onde fosse a viagem o transporte usado seria o «comboio»;
* as viagens das sete turmas do 8º ano (que não as minhas) visaram a «História» (noutra turma foi especificada a «História de Portugal»), o «mundo dos adolescentes», a «Serra da Arrábida» e, nas restantes, a viagem deveria ser «à descoberta», «marítima» ou sobre «turismo e excursões»;
* e as doze turmas do 10º ano escolheram viajar ao «mundo da adolescência», ao «mundo do álcool», ao «mundo da área escola», ao «mundo da arte», ao «mundo do crime», ao «mundo da droga», ao «mundo dos sentidos», ao «mundo da SIDA», ao «mundo do trabalho», ao «passado da escola», ao «Portugal nocturno» ou, numa delas, preferiram fazê-lo através de um «intercâmbio cultural com uma escola da Madeira».
Para quem estuda ou reflecte sobre a adolescência, todos estes temas têm imenso significado!

A síntese do conjunto dos trabalhos realizados, feita no final do ano lectivo, tanto elucidou potencialidades desta área curricular como dificuldades na sua implementação:



Os projectos da escola activos neste ano foram considerados como integrantes do Viva a Escola (ou Projecto Vida), uma iniciativa do Ministério da Educação: o Arisco (dinamizado pelo Carlos e pela Elvira), o Ateliê de Expressão Plástica (Armando Pina), o Ateliê Textil (Maria do Céu Machado), o Clube Escolar de Ciência (Barros), o Desporto Escolar, o projecto Dos Desafios ao Laboratório e a Sala de Jogos (Pedro Esteves), o Grupo Coral (Elsa Mendes), a Mediateca, o Nova Maré, a Rádio SOS e a TV3D (Alice Santos e Sérgio Contreras), o Meteor (Paula Viegas e Vítor Campos), as Notícias via Modem (Luísa Gracioso) e o Teatro (inicialmente só animado por alunos).

Depois de, uns anos antes, o Conselho Pedagógico ter esboçado um primeiro Projecto Educativo de Escola em função da nossa candidatura à «Escola Cultural» (ver testemunho «030»), e de não lhe ter dado qualquer continuidade após a candidatura ter fracassado, propus ao Conselho Directivo, algures no início de 1992-93, que iniciássemos um novo processo de elaboração do PEE, agora de uma forma mais participada e, portanto, mais aberta. O Luís Carlos Carvalho respondeu-me que já tinha tido pensado nisso mas que se esquecera de o apresentar ao Conselho Pedagógico; mas, acrescentou, achava bem que fosse constituído um grupo de trabalho com esse objectivo.
O grupo só começou a trabalhar no 1º período de 1993-94, constituído primeiro pela Alice Santos, o João Louro, o Luís Carlos, o Pedro Esteves e a Teresa Ré, tendo reunido nos dias 14 e 29 de Novembro e apresentado à escola um primeiro documento onde abriram o grupo a quem nele quisesse participar. A primeira das reuniões abertas ocorreu no dia 2 de Fevereiro de 1994 e foi participada por onze professores: Alice Santos, Ana Chorincas, Anabela Esteves, Carla Ferreira, João Louro, Luísa Gracioso, Madalena Ferreira, Manuela Vieira, Pedro Esteves, Rosário Leocádio e Teresa Ré.
O Louro afirmou que a ideia de um «projecto de escola» surgira por conveniência do Ministério da Educação, que não nos proporcionava «autonomia» no que respeitava à «organização interna da escola», às «relações de trabalho», ao «financiamento» e à «possibilidade de estabelecer protocolos»; mas considerou que, apesar destes contras, deveríamos aproveitar a «oportunidade». Eu referi diversos desequilíbrios existentes na escola, a ser por nós pensados. E acordámos ir estabelecendo, ao longo do ano, contactos, bem distribuídos entre nós, com os grupos que pensávamos vir a ter um papel na definição do projecto: a Associação de Estudantes, a Associação de Pais, os Funcionários, o0s grupos disciplinares, os projectos da escola, a Secção de Formação do Conselho Pedagógico, as turmas e os respectivos Directores de Turma).

Numa reunião sindical realizada na escola no dia 26 de Maio, com a presença do coordenador do Centro de Formação de Associação de Escolas Rui Grácio, o Joaquim Sarmento, propus que a estratégia de formação contínua de professores tivesse em conta que a formação “com base em cursos afasta os professores da Escola e não os estimula a criar controlos sobre a sua profissão (e assim fragiliza-os)”; que a formação “baseada em Projectos pode resolver os anteriores problemas”; e que a formação “não conduz sempre a creditação”, pois se assim fosse empobreceria as nossas “aprendizagens”; etc..

Perto do final do 3º período houve eleições para o Conselho Directivo. Eis o folheto com o programa da Lista A (a única a concorrer), constituída pela Madalena Ferreira, pelo Armando Pina, pela Anabela Esteves, pela Isabel Silva e pela Elsa Mendes (dado este folheto ser para dobrar a meio, as suas páginas são, da esquerda para a direita e de cima para baixo: 4 – 1 – 2 – 3):




Em 11 de Julho, já muito perto do final deste ano lectivo, um arquitecto do Ministério da Educação reuniu com professores da escola para uma troca de impressões sobre as futuras instalações. Escrevi nas minhas notas que, para quem trabalhava na escola, só deveria ficar de pé o Pavilão C, sendo todas as outras construções para deitar abaixo; e acrescentei que não tinha ficado esclarecido o modo como se iria prosseguir a troca de opiniões entre as duas partes.
Ao almoço, com a Manuela Vieira, a Teresa Ré, a Maria do Céu e o João Fernandes, talvez por estarmos frustrados com a reunião, combinámos uma estratégia divertida para o desenvolvimento de um modelo para as futuras instalações, cabendo a cada um de nós separar alguma coisa: o curricular do não-curricular (a meu cargo); o Centro de Recursos do resto da escola (Manuela); as humanidades e artes das ciências e tecnologias (Teresa); a utopia da realidade (Maria do Céu); o curso unificado dos cursos complementares (que ficou sem responsável lúdico).

Prosseguindo a ideia surgida e implementada nos anos anteriores, também este ano, durante Julho e parte de Agosto, realizou-se na escola ou a partir dela a Ocupação em Férias, animada por quatro professores e pelas técnicas do Serviço de Psicologia e Orientação. As seguintes áreas escolhidas foram: desporto; passeios; artesanato; jogos; e hortofloricultura.

Fizeram parte do desporto quatro sessões de canoagem.
Entre os destinos dos passeios, estiveram o Jardim Zoológico, um Museu em Lisboa e a Praia de Tróia.
E os jogos decorreram na Ludoteca da escola. Sobre estes, anotei que os alunos adoptaram espontaneamente princípios como a “liberdade” (ninguém foi pressionado a jogar o mesmo jogo que os outros jogavam), a “cooperação” (o mais importante era manter a boa disposição, sem a preocupação de ganhar) e a “persistência” (cada jogo podia ser prolongado para além do momento de vitória de um, para que os outros pudessem explorar os recursos de que dispunham).


Comentários

A Área Escola foi um prolongamento da Escola Cultural, mas, enquanto esta era voluntária, a Área Escola era obrigatória (para as turmas, não para todos os seus professores). Quase dez anos mais tarde, a Área de Projecto manteve a obrigatoriedade para as turmas e restringiu-a a um só professor.
Todas estas experiências permitiram que algumas das questões originadas nos alunos fossem formuladas, e portanto tidas em conta no desenvolvimento curricular.
De notar que os temas escolhidos em 1993-94 por algumas turmas foram prosseguidos no ano seguinte.
No balanço referido acima ficou explícita, no 10º ano, a pressão negativa exercida pela avaliação escolar (através das «provas globais»); parece também evidente que alguns dos temas estariam especialmente ligados a uma só disciplina; e, ainda, não se notaram nesses temas ligações às actividades extracurriculares promovidas pela escola.

O João Louro tinha toda a razão quanto ao PEE ser uma ideia cuja concretização interessava ao Ministério da Educação e que exigiria uma «autonomia» da escola que não nos tinha sido concedida. E também tinha razão em considerar que, apesar disso, deveríamos  aproveitar a «oportunidade»: é que a «autonomia» deve ser afirmada e reclamada por aqueles que desejam ser «autónomos», e não concedida por alguém com poder para o fazer.

A direcção em que o Centro de Formação Rui Grácio trabalhou nos anos seguintes correspondeu aos desejos formulados na reunião sindical, o que pode não ter acontecido noutros Centros de Formação de Associação de Escolas do país.

O Ministério da Educação foi experimentando várias tipologias de instalações nas escolas, e cada uma foi utilizada numa determinada época, facilitando-lhe o enorme esforço de construção necessário para responder à explosão de alunos inscritos no sistema escolar após o «25 de Abril» (sobretudo no 3º Ciclo e no Secundário). Os contactos dos arquitectos com as escolas não seriam mais do que uma acção de sensibilização da comunidade escolar para os problemas que iriam enfrentar (nomeadamente a redução do espaço de aulas e os condicionamentos à circulação durante o tempo das obras), e de modo nenhum resultavam de qualquer vontade de a «ouvir».
Mas a tipologia típica de cada época não se reduzia à forma dos edifícios, incluía também o conetúdo de cada um e a sua organização interna. Se fosse possível, nem seria fácil «negociar» alterações dessas tipologias com o Ministério da Educação, nem seria fácil estabelecer consensos dentro da comunidade educativa sobre as propostas a apresentar nas eventuais «negociações». Este foi um assunto a que se iria voltar mais tarde.


Fontes: Pedro Esteves / Arquivadores de documentos analógicos ESJA Cinco (Doc. 20) e Seis (DOC.s 13, 28, 42, 59 e 61)

[076] Açores: o meu segundo ProfMAT

Memórias

A Escola Secundária das Laranjeiras (Ponta Delgada, Açores) foi a escolhida para a realização do ProfMAT de 1993. Inscrevi-me e, desta vez, decidi ir um pouco mais cedo para participar numa das acções de formação que o precederam.
E lá fui. Na 2ª e na 3ª feira (25 e 26 de Outubro) frequentei um curso sobre «História da Geometria», orientado pelo Paulo Almeida. E nos dias seguintes, de Quarta-feira a Sexta-feira e no Sábado de manhã, participei no encontro propriamente dito.
A Rita Vieira, a Teresa Nascimento e eu, membros do projecto MATlab, tínhamos preparado uma «comunicação oral» intitulada A Matemática nas Margens do Currículo, onde reflectíamos sobre as ligações e as diferenças entre «Ludoteca», «Centro de Recursos» e «Laboratório de Matemática», em função dos papéis que estes espaços podiam desempenhar para os alunos e para os professores.

Eis um momento desta «comunicação» (a Rita não se deslocou a este ProfMAT), captado por um fotógrafo profissional que circulou pelo encontro:


O que várias das escolas de Almada e Seixal tinham até aí feito neste âmbito dos velhos e dos novos espaços escolares foi por nós descrito assim (ainda não havia Power Point, sendo usados acetatos para projectar texto e imagens; mas o resultado era o mesmo):


E a tendência que prognosticávamos para o futuro destes espaços foi esta:

A nossa comunicação decorreu, claro, em torno do que estas duas imagens podiam dizer das dinâmicas das escolas.

Coube-me ainda coordenar um «painel», subordinado ao tema A pluralidade educativa: na sala de aula, nos programas, nos percursos individuais. Desafiei para ele o José Manuel Duarte (Escola Secundária da Parede), o Julio Mosquera (Universidade Central da Venezuela), a Lina Vicente (Escola Secundária Pedro de Santarém) e o Paulo Abrantes (Faculdade de Ciências de Lisboa).
Para convencer os participantes no ProfMAT a preferir este painel a outras actividades que estavam a decorrer em simultâneo com ele, escrevi este texto para o programa do encontro:
As situações pedagógicas são cada vez mais marcadas pela individualidade das aprendizagens e pela colectividade do contexto.
Compreendê-lo e assumi-lo na intervenção educativa tem importantes consequências, que estão longe da elucidação: na sala de aula (como promover as diferenças e gerir o colectivo?), nos programas (como pode o professor ser um seu intérprete? quem, e como, deve promover alternativas de fundo?) e nos percursos individuais (serão os currículos flexíveis? estarão abertos às aprendizagens informais e às necessidades de cada um?).
Depois, como preparação para as intervenções dos meus convidados, coloquei-lhes (com antecedência) as seguintes questões: a) Como gerir a diversidade de situações individuais na aula? como evitar a homogeneização que pode resultar das pressões provocadas pelos exames? b) Havendo um cada vez maior e mais diversificado número de intervenientes na Escola (especialistas internos e externos, origens culturais, aprendizagens paralelas) como lidar com essa pluralidade? como a utilizar no desenho do currículo? c) Verificando-se actualmente um alargamento do sistema educativo (nomeadamente através da educação recorrente, das unidades capitalizáveis, dos cursos profissionais, etc.), que influências interessantes pode ele exercer sobre o restante sistema educativo?
As respostas dadas foram, como era de esperar, muito exploratórias. Mas, penso, não se podem esperar «respostas» de um painel, mas sim o contributo para que se desenvolva um «ambiente de debate», a prosseguir muitas outras vezes e em muitos outros locais.

Lembro-me ainda do jantar oferecido a todos os participantes, que decorreu em vários locais da cidade. Nele foi tirada (de novo por um profissional) esta fotografia onde, de frente para o fotógrafo, estão (da esquerda para a direita) eu, a Teresa Nascimento e a Patrícia Cascais (gente de Almada e Seixal):


E lembro-me finalmente da Assembleia Geral da Associação de Professores de Matemática (APM), particularmente do debate que aí houve sobre a «formação de professores»; o João Pedro da Ponte defendeu que ela poderia poderia ser uma fonte de financiamento para a APM; e o Henrique Guimarães afirmou, a dada altura, que o melhor modo de apoiar a «mudança da educação» deveria ser através do «exemplo».

Comentários

O que recordei acima está muito associado àquilo a que se costuma chamar «debate».
E talvez as circunstâncias da altura o favorecessem, pois a reforma curricular estava-se a expandir pelos diversos anos lectivos, permitindo que começassem a ser manifestadas opiniões sobre as mudanças que aconteciam e sobre as que queríamos que acontecessem.

Hoje, passadas três décadas, podemos confrontar o que então se passava e se dizia com a realidade que entretanto se foi instalando.

O conceito de «Laboratório de Matemática», recuperado dois ou três anos antes pelos membros do MATlab, e que estava naquela altura a suscitar atenções dentro da APM, acabou por ir sendo esquecido, provavelmente porque «as escolas são pobres» (ou seja, porque nunca houve dinheiro para que elas pudessem ter iniciativas que implicassem a criação de novos espaços).
O mesmo aconteceu com as «Ludotecas», embora um pouco mais devagar.
A estes desaparecimentos estiveram associados outros fenómenos, como o da «formalização do currículo»: para quem o promoveu, tudo o que se faz na escola deve ser dirigido para a promoção das orientações estabelecidas pelo Ministério da Educação, sendo por isso quase nula a «autonomia» concedida aos professores.

O conceito de «associativismo docente », embora nunca explicitamente debatido, também esteve presente nos Açores, muito em particular na Assembleia Geral. Ao recordar as intervenções que referi, considero-as como representando duas maneiras bem diferentes de o encarar, uma baseada no cálculo organizacional, portanto pensada «a partir de cima», a outra baseada na acção individual e colectiva, portanto sentida como devendo ser «a partir de baixo».
Foi a primeira concepção que acabou por se ir impondo.
E a força com que se estava, subterraneamente, a impor, terá sido uma das razões para as dificuldades que um pequeno grupo de professores de Almada e Seixal sentiram para se entender quando, um ou dois anos depois, conversaram sobre o papel colectivo que deveriam atribuir aos seus «projectos» (ver nota «49» ao testemunho «073»).

Fontes: Pedro Esteves / Envelope com fotografias analógicas / Arquivador de documentos analógicos APM Um (Doc. 29) / Revista da Associação de Professores de Matemática, ProfMat 1993 (pp. 159-164, 281-283)

[075] Três problemas de Matemática para os alunos de outrora e para os curiosos de hoje

Memórias

Quando a reforma curricular se iniciou no 7º ano, em 1992-93, fui manuscrevendo uma espécie de «diário» sobre o que preparava para as minhas aulas e, sobretudo, sobre o que depois se passava nelas. Um problema que os alunos levaram para casa e que correu bem a todos (devem ter estado em contacto uns com os outros), foi o do «último algarismo de uma potência de 2», que pode ser enunciado assim:
As primeiras potências de 2 são:
21 = 2
22 = 4
23 = 8
24 = 16
25 = 32
26 = 64
27 = 128
28 = 256
29 = 512
210 = 1024
Será possível, a partir destas potências, determinar qual o algarismo das unidades de, por exemplo, 2200?
Uma das ideias por detrás deste problema era a de levar os alunos a perceber os limites da máquina de calcular, concluindo que, quando ela não pode resolver directamente um problema numérico será necessário procurar métodos indirectos.
O leitor deste blogue pode, aí em casa, proceder às suas próprias experimentações deste problema (tem certamente uma «máquina de calcular» associada ou ao seu computador ou ao seu telemóvel).

Quando a reforma curricular chegou ao 8º ano, em 1993-94, continuei a manuscrever o «diário», tendo então um pouco mais de tempo para o fazer, pois já não estava envolvido no projecto AlterMATivas.
Eis um dos problemas que propus e que durou duas aulas a resolver (naquela altura elas duravam apenas 50 minutos):


Enquanto no problema anterior a «máquina de calcular» tinha um papel limitado, neste outro os «materiais manipuláveis» eram indispensáveis (pelo que desta vez será difícil ao leitor proceder às experiências necessárias para resolver este problema, pois pouca gente terá um conjunto de «polydron» em casa).

Ainda em 1993-94, o problema que para mim teve mais piada foi proposto às minhas três turmas do 8º ano no início da última semana de aulas:
A soma das idades de Pai, Mãe e Filho é de 91 anos.
A Mãe tem mais 25 anos que o Filho e o Pai mais 5 anos que a Mãe.
Qual é a idade de cada um dos membros desta família?
Disse aos alunos que não iria avaliar as respostas, que era só para perceber como eles resolviam o problema e que respondessem individualmente. Mas eles, habituados a interagir durante as aulas, e não havendo restrições devidas à avaliação, acabaram por cruzar muitas conjecturas, refutações e contra-conjecturas.
Escrevi no tal «diário»:
Na turma G, onde observei com mais cuidado o que se passava, verifiquei que o primeiro resultado «colectivo» (mas não atingido por todos ao mesmo tempo) foi a determinação de que na altura da nascença os pais teriam 25 e 30 anos, portanto 25 + 30 = 55 e 91 – 55 = 36; aqui surgiu a primeira crise, com o filho «a ter 36 anos, mais do que a idade dos pais»”.
Depois, foram sendo descobertas várias estratégias:
a) dois alunos do 8º G perceberam que teria de ser 36 : 3 = 12 e daí obtiveram 12 anos, 25 + 12 = 37 anos e 30 + 12 = 42 anos;
b) seis alunos do 8º C e um do 8º D partiram da data de nascimento; foi o caso da Ana Salvador e da Marta (do 8º C), que atribuiram para essa data F = 0, M = 25 e P = 30, pelo que, ao se fazer F = 5, se teria M = 30 e P = 35; e se F = 10, etc., e se F = 11, etc., e se F = 12, etc., só agora conseguindo que F + M + P = 91.
c) dois alunos do 8º G usaram um processo muito semelhante ao anterior, partindo de que M + P = 55 e notando que em cada ano que passava haveria mais 3 anos distribuídos pelos três familiares, assim continuando a ser até que a soma das idades atingisse os 91 anos;
d) quatro alunos do 8º D fizeram deduções a partir dos 91 anos, mas três deles foram muito pouco claros; o único correcto (Bruno Godinho) considerou a «distância» entre as idades, sendo o seu método muito próximo do método a);
e) um aluno do 8ºD tentou usar traços (uma fila de 5 e outra fila de 15) como suporte, mas não atingiu nenhuma conclusão.

Comentários

Uma questão que penso não ter colocado a propósito do primeiro problema, mas que hoje acrescentaria, foi: como podemos «ter a certeza» de o padrão 2 – 4 – 8 - 6 se ir sempre repetir?
A resposta prática que seria considerada suficiente: porque o algarismo das unidades resulta exclusivamente da multiplicação de «2» pelo anterior algarismo das unidades.

O segundo problema levanta-me uma questão em relação às ferramentas que hoje existem: em vez de usar os «polydron», poder-se-á hoje fazer o mesmo com os computadores (que mais dificilmente simula as três dimensões), tendo o mesmo efeito nas aprendizagens?

Quanto ao meu problema preferido, se a ideia foi observar como os alunos encontravam um método de resolução que funcionasse, a realidade mostrou que surgiram várias ideias interessantes, que algumas delas foram comentadas dentro de cada turma, e que uma boa parte dos alunos conseguiu chegar a um resultado correcto.
Curiosamente, tendo estas turmas já conhecimento da ferramenta «resolução de equações», ninguém seguiu por essa via (e havia nelas alunos formalmente muito bons; mas também havia alunos informalmente muito bons). No entanto, as estratégias de resolução seguidas por estes alunos possuem, no seu âmago, ingredientes subjacentes à estrutura lógica das «equações» (aspectos aditivos, subtrativos, multiplicativos e divisivos).

Já havia colocado este problema a outras turmas e voltaria a fazê-lo em anos posteriores. Quando foram alunos do Secundário a tentar resolvê-lo, foi mais frequente o uso de uma «equação», tendo até sido usado um «sistema de equações».

Houve no entanto um método que nunca surgiu e que me parece poder resumir, graficamente, os outros métodos:

Desenho feito ontem na areia da Costa da Caparica


Ao centro, em cima, três barras representando as idades a determinar (com as diferenças «5» e «25» assinaladas). E à esquerda e em baixo os principais cáculos a fazer (91 – 55 = 36 : 3) ...
Para quem gosta de estudar o pensamento humano: coloquem este problema aos vossos amigos!


Fontes: Pedro Esteves / Arquivador de documentos analógicos ESJA Seis (Doc.s 10 e 11)

[074] Início de mais um ano lectivo: 1993-94

Memórias

Em 1993-94 foram dados novos passos para transformar, «de cima para baixo», o sistema educativo: a reforma curricular foi generalizada ao 3º, ao 6º, ao 8º e ao 10º anos; e o avaliação dos alunos do secundário foi regulamentada (Despacho Normativo nº 338/93, de 21 de Outubro).
Como consequência destas medidas, e de outras tomadas nos anos anteriores, deu-se início à obrigatoriedade das provas globais, para os alunos do 10º ano, e da formação contínua, para os professores.

Foi também neste ano que terminou o Projecto Minerva.

Aparentemente sem ligação às questões educativas (mas tendo-a, de facto), o Tratado de Maastricht entrou em vigor no dia 1 de Novembro de 1993 (havia sido assinado em 7 de Fevereiro de 1992).
E, para supervisionar tudo isto, António Couto dos Santos foi substituído no Ministério da Educação, no dia 7 Dezembro de 1993, por Manuela Ferreira Leite, que permaneceria neste cargo até 28 Outubro de 1995.

Continuei a trabalhar com as três turmas do 7º ano que tivera em 1992-93, agora no 8º ano:
 






Tive, mais uma vez, um bom horário: as três turmas concentradas na 2ª, na 3ª e na 4ª feira; as «actividades culturais» (principalmente as da Ludoteca) nas tardes das 4ª feiras (e, além delas, sempre que fosse necessário); e o papel de «formador» (por estar no Centro de Formação da APM) de acordo com uma rotina (de que já não me recordo):


Comentários

Contrastando com os três anos anteriores, em que estive fortemente envolvido no AlterMATivas, este foi um ano curricularmente calmo. Deixei de estar preocupado com a produção de materiais e com a organização do projecto, estando apenas concentrado em utilizar (e melhorar) com as minhas turmas o que fora produzido antes.
Talvez por isso este foi um dos anos em que os resultados escolares foram melhores: não atribuí, no final do 3º período, qualquer negativa.


Fontes:
Pedro Esteves / Arquivador de documentos analógicos ESJA Seis (Doc.s 3 e 9)
Wikipédia (para os ministros da Educação)
Melo (2009; p. 214) para a avaliação no Secundário

[073] Uma apreciação do Projecto AlterMATivas, três décadas depois (V)

Estudo de caso


As reflexões depois do projecto: sobre o sistema

Como se viu, a equipa do AlterMATivas tanto encontrou no contexto reformista e associativo um estímulo para o seu projecto como, com outros professores da sua região, o ampliou (fundando e animando o Núcleo da APM) e reforçou (afirmando uma das suas características centrais, a iniciativa profissional).
Esta interacção permitiu que fossem estabelecidos os primeiros «nós» de um «rede» de possíveis cooperações e criadas condições para que o «sistema» em que todos trabalhávamos fosse pensado. No entanto, no final de 1992-93, coincidindo com a conclusão do AlterMATivas, essa interacção estava a ser profundamente modificada, como consequência das alterações provocadas pela reforma curricular em vias de se generalizar.
Como foram estas mudanças sentidas (ou não) pelos membros da equipa do projecto?

O problema da «rede»

No Relatório Final do AlterMATivas, o impacto dos materiais científicos, pedagógicos e escolares que estavam a começar a ser divulgados como forma de apoio à reforma curricular levou a que tivéssemos comentado o futuro de projectos semelhantes ao nosso como já não possuindo tanto o objectivo de “criar ideias «desde o início»” mas sim o de “incluir mais fortemente uma componente de recolha e de adaptação de ideias publicadas, em função de metodologias que respondam a problemas contextualizados”.
Poucos anos depois, através da minha tese de mestrado, descrevi as consequências que a reforma curricular tivera nos professores que haviam estado envolvidos no AlterMATivas e no Núcleo Regional a partir de um outro ponto de vista, o do associativismo:

·      o trabalho associativo local não mobilizara amplas faixas de professores para a Reforma Curricular (estava limitado a um determinado perfil de professores); e

·      iria ser reforçado o papel de uma multiplicidade de actores externos às escolas (especialistas de desenvolvimento curricular, de produção de materiais educativos, de formação, etc.). Nota 38

O contexto do nosso trabalho modificara-se, lembrando-nos que, além das interacções cooperativas, também teríamos de contar com concorrências, se não mesmo com conflitos. E a parte do contexto que era favorável à cooperação encurtara-se, pois agora só podíamos contar com os docentes mobilizáveis associativamente.
A este encurtamento deveriam ser acrescidos dois outros limites da nossa rede de acção, a que nunca havíamos prestado grande atenção, apesar de eles nos caracterizarem desde a fundação do Núcleo: por um lado, a maioria dos professores que faziam parte dessa rede leccionava o 2º e o 3º Ciclos (assim foi no AlterMATivas, no Grupo de Trabalho do 5º e do 7º ano e no MATlab), não contando com aqueles que leccionavam o 1º Ciclo e, menos radicalmente, o Secundário; por outro lado, não foi explorada a via do associativismo multidisciplinar (as poucas e breves excepções conhecidas verificaram-se nalgumas escolas, tendo sido divulgadas pelo Núcleo da APM).

Em Almada e Seixal, os contactos com os professores que leccionavam as «didácticas» no Ensino Superior foram bem sucedidos até meados da década de 1990 (eles participaram em todos os Encontros Regionais). Mas esta era uma área em que as ideias estavam a fervilhar, devido à teoria que tinha sido escolhida para orientar a reforma curricular.
Para José Augusto Pacheco (baseando-se em Stephen Kemmis), as «teorias curriculares» então disponíveis eram três Nota 39. A teoria técnica, que predominara até meados da década de 1970, atribuía a condução das reformas curriculares a um Estado normativo, com o apoio técnico de especialistas, sendo dela ainda exemplo a que acabara de ser implementada entre nós. A teoria prática atribuía aos especialistas a autoria do currículo, pretendendo que este fosse uma ferramenta para os professores, que o deveriam adaptar às necessidades de aprendizagem dos alunos, tendo o Estado como papel coordenar a participação. E a teoria crítica encarava o currículo como um instrumento nas mãos de todos os intervenientes, em pé de igualdade, sendo o Estado responsável pelos processos de negociação.
Não admira que os nossos especialistas curriculares tenham criticado a escolha feita pelo Estado e que este, sob pressão, tenha acedido, em meados da década de 1990, a introduzir mudanças na reforma em curso, que viriam a equivaler a uma efectiva nova reforma, primeiro da organização das escolas e depois dos currículos (implementadas na transição das décadas de 1990 e de 2000). E a teoria curricular escolhida para orientar esta mudança foi a «teoria prática».
No AlterMATivas não eram conhecidas «teorias curriculares». Mas, se o fossem, tenho a certeza que os membros da equipa iriam preferir ou a teoria prática ou a teoria crítica; e se conversassem sobre isso depois de as personalidades com maior influência na própria Associação de Professores de Matemática se terem começado a alinha pela escolha que o Ministério da Educação havia feito, estou convicto que a equipa do AlterMATivas não se iria entender Nota 40.
O contexto associativo também se estava a complexificar. E tornava-se claro que os professores precisavam de desenvolver uma teoria curricular própria, o que pressupunha discutirem as teorias que existiam e, como consequência, o papel que associativismo devia ter em relação às reformas.

A decisão de frequentar um mestrado foi, para muitos professores, apenas uma oportunidade para progredir mais rapidamente na sua carreira; não pretendiam aprender para o reinvestir na escola.
Mas alguns levaram para o mestrado motivações com origem na sua acção profissional, deparando-se, no entanto, com o problema de estar fora do contexto que as gerou: uma das grandes limitações de um mestrado é o facto de os temas abordados na parte curricular e na dissertação terem de encaixar em «linhas de investigação» definidas pela instituição formadora, ou seja, adequadas ao que lá se faz e se pensa vir a fazer.
Eu e a Filomena, depois de terminado o projecto InterMAT, decidimos concorrer ao mestrado em Ciências da Educação na Faculdade de Ciências e Tecnologia (FCT), no Monte da Caparica, tendo nele entrado em 1994-95.
A minha decisão teve a ver com as insuficiências que sabia ter no campo da «investigação». Não as quis resolver através do mestrado da Faculdade de Ciências de Lisboa, para não ficar fechado na «didáctica» (um tema facilmente tecnocratizável), e agradara-me a amplitude do tema proposto na FCT, a «educação e desenvolvimento», bem como a forma de a parte curricular ser abordada, por grandes áreas em contacto umas com as outras (o que, em vez de levar « a educação para o mundo», traria « o mundo para a educação»).
Só tomei uma decisão sobre o que iria estudar para escrever a dissertação quando a parte curricular terminou, talvez por me ter apercebido, ao longo desta, das incompletudes do trabalho que andávamos a fazer no Núcleo Regional Nota 41. A Filomena, pelo contrário, já levava uma ideia muito definida sobre o que queria aprofundar: na entrevista que lhe fiz (destinada à minha dissertação) ela explicou-me que durante o AlterMATivas se apercebera da dificuldade que muitos alunos tinham para “expressar minimamente as suas ideias”, tendo por isso colocado a hipótese de “uma boa parte do insucesso” poder ser devida aos professores de Matemática não lhe darem a “devida importância”; portanto, ela queria perceber o que se passava entre as nossas cabeças e os meios de que dispúnhamos para comunicar uns com os outros (orais, escritos, visuais).

Conhecer o que os especialistas em educação tinham produzido e enriquecê-lo com novos conhecimentos (através de uma tese) chamava-nos a atenção para a ausência de um contexto favorável a que isso (também) acontecesse no seio da própria profissão docente, de modo a que aí pudéssemos melhor formular as nossas ideias, e até teorias, articulando, sempre que o achássemos justificado, «conhecimentos internos» e «conhecimentos externos». Mas não me recordo de ter havido qualquer manifestação de desejo nessa direcção.

O problema da «mudança»

O projecto AlterMATivas nasceu da consciência de que havia muito a mudar no nosso sistema educativo e da vontade de contribuir para essa mudança.
Mas «mudar» é a condição inelutável das pessoas, das instituições e das sociedades.

Em Portugal, os ventos de mudanças na educação tinham começado a soprar mais fortemente na década de 1960, acelerando notavelmente após 1974. Assim, as questões que se podiam colocar quase vinte anos depois, na primeira metade da década de 1990, não eram sobre haver ou não mais «mudanças», mas sim sobre a «direcção» em que elas iriam (a mesma, outra diferente?) e sobre «como» elas aconteceriam (quem as implementaria?). Pelo que, anunciar a necessidade de mudar apenas indiciava a vontade de desempenhar um papel maior no prosseguimento das inevitáveis mudanças, influenciando mais profundamente a sua «direcção» e o seu «como».

Ao concluir este olhar retrospectivo sobre o AlterMATivas e sobre os seus contextos, tenho pena de não ter sido realizado, por aqueles anos, um debate público entre todos quantos estavam envolvidos na educação. Talvez não conduzisse a nada, por diversas razões, sendo uma delas as grandes incompletudes que todos então tínhamos.
Mas, hoje, posso imaginar um tal debate, usando para ele os argumentos já disponíveis (ou em gestação) por volta dos anos em que o AlterMATivas foi implementado. Penso que esse debate virtual ajuda a clarificar o «passado» e, espero, também o «futuro».
Eis a sua transcrição:

 

Moderador (Ministério da Educação): Bom dia a todos! Obrigado pela vossa preença. Começarei por dar a palavra à Doutora Ana Benavente. Peço que se vão inscrevendo para intervir a seguir. E que, na altura de o fazerem, se identifiquem, através do nome e da situação profissional.

Ana Benavente (investigadora): Para reformular um “sistema” (transformando-o no seu conjunto; alterando-lhe a lógica subjacente; obtendo dele melhores resultados) é necessário que lhe sejam introduzidos “novos elementos”, aptos a produzir uma “descentração” em relação ao sistema existente. Penso, portanto, que “a mudança da escola exige uma descentração em relação à escola, assim como mudar as práticas na sala de aula exige um alargamento do espaço educativo”. Dou um exemplo: a “construção escolar do sucesso / insucesso” deve deixar de ser a «construção do insucesso», uma perspectiva fatalista, como até agora tem sido; ela deve passar a ser a «construção do sucesso”, e esta mudança exige “abandonar o conceito formal de «igualdade de oportunidades»”, no qual está suposta uma “«indiferença às diferenças»Nota 42.

Desconhecido A (historiador): A sua teoria é interessante. Mas, penso, deveríamos lembrar-nos de uma observação feita pelo Raymond Boudon: “não pode haver reflexão, teoria ou investigação sobre a mudança social que se distinga seriamente da actividade intelectual designada habitualmente pelo termo «história».Nota 43 Se ele estiver certo, então deveremos ter em conta que apenas nos está aberta a compreensão do «passado», mas não o modo de chegar a um determinado «futuro».

Desconhecido B (estudante numa ESE): Será sempre necessário estar atento às «diferenças» entre os alunos? Li há pouco tempo o «Diário» do Sebastião da Gama, que já tem uns quarenta anos, e ele um dia escreveu: “Entrei na aula e disse que o mais interessante e consolador seria que cada exercício trouxesse um cunho «pessoal e intransmissível». Que o facto de aparecerem trinta respostas diferentes a uma pergunta de modo nenhum significava que alguma delas estivesse menos certa.Nota 44 Se entendo bem o que ele fez, em vez de estar atento às «diferenças», foi deixar que estas se manifestassem, tendo o cuidado de evitar uma das muitas situações que «produzem as diferenças», como a definição prévia de um padrão de chegada e a competição por esse padrão. Terei compreendido bem?!

Desconhecido C (membro do AlterMATivas): O meu futuro colega talvez tenha razão. No nosso projecto tínhamos como objectivo estar atentos às «diferenças», mas acabámos por, não mexendo nos «conteúdos» do programa e apenas mexendo nas «metodologias», cair numa das situações favoráveis à «manutenção das diferenças», que é a necessidade de «cumprir o programa».

José Augusto Pacheco (investigador): Se queremos mudar não nos podemos esquecer do peso exercido pelas “práticas centralizantes” do Estado sobre o nosso sistema educativo Nota 45.

José Alberto Correia (investigador): Sim, receio bem que essa centralização venha a apoiar o desenvolvimento de um “modelo tecnicista”, que permita ao Estado a ocultar as suas “opções políticas” e o seu “controlo sobre os professores” e que conduza as “chamadas ciência da educação” a se transformarem em “Tecnologias de Acção ou da Reforma EducativaNota 46. Ou seja, receio que venha transformar qualquer tentativa de descentração em novas formas de centralização. Como dizia o Lampedusa, há o risco de começarmos a “mudar tudo” para que “tudo continue como estáNota 47.

Desconhecido C: No nosso projecto, o AlterMATivas, e nas iniciativas do associativismo regional onde ele se integrou, envolvemos professores de várias escolas, não respeitando as fronteiras que o costumam impedir. E através desta cooperação ganhámos coragem para criar novos espaços educativos em cada escola (clubes, laboratórios, ludotecas). Penso que estes dois aspectos são exemplos de «descentração».

Alberto Melo (investigador): “Os projectos experimentais que deram bons resultados foram, via de regra, realizados por «bons» investigadores-actores e encontraram um contexto favorável, parece-me, pois, demasiado optimista a perspectiva de generalização, pois, com outras pessoas e noutros ambientes, o projecto nunca será o mesmo.” É importante evitar a “«oficialização» - que significará a adopção dos projectos como programa a lançar de cima para baixo”, sendo preferíveis os processos de “disseminaçãoNota 48.

Desconhecido C: Na nossa região apenas divulgamos as ideias e os projectos, e procuramos criar redes; talvez isso contribua para que haja «disseminação». Mas sempre que alguém se inspira no que foi divulgado introduz novas perpectivas, resultantes das suas preferências. É preciso contar com as «diversidades» e também com as «divergências» no trabalho cooperativo. Mas também é preciso contar com o enorme desgaste da manutenção destas inovações. Nota 49

José Alberto Correia: Gostaria de vos lembrar o Francis Imbert, que vem das correntes clínicas em pedagogia. Para ele, “a acção pensada como práxis não se pode confinar ao quadro de uma relação entre a teoria e a sua aplicação, isomorfa da relação «autor e paciente [pois ela] é interacção entre autores que se afirmam como seres actuantes uns em relação aos outros de tal forma que cada um nunca é apenas agente, mas sempre e ao mesmo tempo paciente»Nota .50. Penso que é deste modo que temos de encarar qualquer relação estabelecida no interior do sistema educativo, pois são as relações que fundamentam qualquer mudança.

Rui Canário (investigador): Voltando aos «projectos». A escola tem estado “subordinada a uma lógica de compartimentação”. É necessário que o seu “projecto educativo” se torne o instrumento da “constituição da autonomia” da escola, capaz de “articular e fundir” num só processo as “vertentes da inovação, da formação e da investigação”. Teremos, então, a “escola das equipas e dos projectos.Nota 51.

José Alberto Correia: Sim, mas diferentemente do “actor”, que se define “exclusivamente no domínio da poíesis em torno das noções ambíguas de estratégia e de intencionalidade”, o “autor encontra o seu sentido na práxis, na confluência da acção com o discurso”. Assim, se definirmos a escola “como processo”, ela “interpela o próprio discurso que a interpela”; os “projectos educativos de escola” correm riscos, se produzidos “em contextos de trabalho taylorizados” ou se permeáveis à “lógica de mercadoNota 52.

Moderador: Obrigado pelos vossos contributos. O Ministério da Educação tem a intenção de lançar uma larga consulta pública, aberta à participação de todos, onde também contamos com a vossa!

 

Comentários finais (sem qualquer proposta)

Usei a ferramenta da auto-e-ecoprodução para, ao apreciar o projecto AlterMATivas, compreender melhor aquilo em que a profissão docente se pode tornar (sob o ponto de vista do que desejo).
Deliberadamente, mantive a ferramenta quase no mesmo estado em que a encontrei, ou seja, como se fosse um pedaço de madeira com que, de improviso, se procura estudar o funcionamento de um formigueiro.
O que encontrei parece poder ser resumido em poucas frases:
* Não foi possível compreender o AlterMATivas sem ter em conta cada um dos seus membros e dos seus contextos; era intenção do projecto contribuir para a «mudança da educação», mas o próprio conceito de «mudança» se torna intratável se se pretender dirigir esta para um resultado concreto.
* São as interações entre tudo e todos os envolvidos num dado processo que produzem a respectiva mudança; portanto, em vez de imaginarmos os resultados desta, é preferível entrarmos em contacto com «quem» (e observar «o que») nos acompanhará nesse processo.
* Seja para mudar a docência, uma escola, ou o sistema educativo, o esquema metodológico é o mesmo, como exemplifico a seguir com o caso mais geral:


* Há mais de cinquenta anos, a configuração dos envolvidos no nosso sistema educativo era dominada pelo Estado; e parece que continua a sê-lo, embora com uma orla muito mais robusta de parceiros previlegiados; é assim porque todos os outros parceiros não se conseguiram impor; mas também porque os previlegiados o quiseram ser e continuar a ser.

* Se houve dois contributos chave nesta minha apreciação do AlterMATivas, eles foram os dois que recordo e comento a seguir: o de Karl Popper, ao afirmar que “a nossa pedagogia consiste em sobrecarregar as crianças com respostas, sem que elas tenham colocado questões, e às perguntas que fazem não se presta atençãoNota 53; e o de Sebastião da Gama, ao tornar clara a razão pela qual não lhe apetecia “classificar os rapazes”: é que “não é para isso que eu dou aulas.Nota 54. Acho fundamental o contributo de Popper, porque realça a atitude básica de qualquer convívio, o sermos capaz de ouvir para podermos conversar. E acho de outro modo fundamental o contributo de Gama, porque toca no que deve ser um direito básico de qualquer profissional: a liberdade de incluir a sua intenção naquilo que faz.
* Definitivamente, penso que qualquer mudança de facto interessante (da docência, da escola, do sistema) dependerá do modo como formos capazes de articular estes dois contributos.



Notas finais à Vª parte:

Nota 38: Esteves (1998; capítulo 7 ponto 1.2).

Nota 39: Pacheco (1996)

Nota 40: Hoje penso que nenhuma destas teorias era consistente. Abordei-as e dicuti-as em Esteves, (2023; ponto 17); e penso voltar a elas, para as ultrapassar

Nota 41: Uma pequena história: o meu orientador de mestrado, o José Manuel Matos, já depois de conhecer o tema que eu escolhera para a tese, disse-me que, se estivéssemos nos Estados Unidos da América e se aí soubesse que havia um grupo de professores a fazer o que estávamos a fazer em Almada e Seixal, já tinha aparecido uma equipa de investigadores para o estudar. É claro que há vários significados possíveis para esta história: nos Estados Unidos há dinheiro para fazer estudos destes; em Portugal os investigadores não ligam às iniciativas que não são tomadas por eles, talvez por não terem dinheiro para outros voos; mas estas duas interpretações podem ser tomadas em simultâneo

Nota 42: Benavente (1989)

Nota 43: Boudon (1990)

Nota 44: Gama (1970)

Nota 45: Pacheco (1996)

Nota 46: Correia (1998)

Nota 47: Lampedusa (1995)

Nota 48: Melo, citado por Nóvoa (1992 b)

Nota 49: Como exemplo, o modo como descrevi na minha tese a conversa (entre alguns membros do Núcleo) sobre as formas de trabalho interescolas (já referida acima) foi este: “Como consequência, foram particularmente elucidativas três interpretações retrospectivas dos professores sobre o tipo de actividades inter-escolas que, nestas circunstâncias, poderiam ter continuado o trabalho associativo local de apoio à intervenção profissional:
* seria a dinamização associativa a desencadear as intervenções dos professores (ênfase para o papel inicial de alguns - tendência verticalizante);
* seria necessário partir das intervenções dos professores para definir qual a dinamização associativa (ênfase para o papel inicial de todos - tendência horizontalizante); e
* seria necessário atribuir a condução associativa aos professores que se envolveram nos projectos inter-escolas, em nome da organização local (tendência exemplar).
” Esteves, 1998; capítulo 7 ponto 1.2)

Nota 50: Correia (1998)

Nota 51: Canário (1991; 1992)

Nota 52: Correia (1998)

Nota 53: Popper, em debate com Lorenz (1990)

Nota 54: Gama (1970)



Fontes

As fontes

Sobre o Projecto AlterMATivas foram delimitados dois conjuntos de fontes, sendo considerados todos os documentos de um e de outro: o que foi coligidos pelo autor deste estudo de caso; e o que foi coligido no âmbito das iniciativas do Núcleo da APM em Almada e Seixal.

Sobre o contexto do Projecto AlterMATivas (Ministério da Educação; associativismo docente; escolas) apenas foram considerados os documentos já mobilizados no âmbito da escrita da tese de Esteves (1998).

Fontes principais

Actas de Encontros de Professores de Matemática:

Regionais (Almada e Seixal): 1991; 1992; e 1993;
Nacionais (ProfMAT): 1992 (Viseu); e 1993 (Açores)

Livros analógicos: Abrantes (1994); Barbier (1993); Benavente (1989); Böer e Meyer-Lerch (1989); Boudon (1990); Canário (1991); Canário (1992); Gama (1970); Lampedusa (1995); Esteves (1998); Nóvoa (1992 a); Nóvoa (1992 b); Pacheco (1996); Popper e Lorenz (1990); Santos (2008)

Pedro Esteves / Arquivadores analógicos:

APM Um (Doc. 8, 27 e 28);
ESJA Três (Doc.s 1, 2, 5, 127 e 128);
ESJA Quatro (Doc. 1, 18, 57, 106a, 106b, 106c, 107 e 158);
ESJA Cinco (Doc.s 33 a 46);
ESJA Sete (Doc. 1);
AlterMATivas

Pedro Esteves / Arquivador digital: Tese de Mestrado (4EXPR: 11; 12; 13; 16; 27; 28; 29; 41; 43; e 81)

Pedro Esteves / Pasta analógica: SPM (Inflexão: Nº 1, Junho de 1981)

Pedro Esteves / testemunhos deste blogue: «045», «049», «054», «059», «062», «063», «067» e 069»

[072] Uma apreciação do Projecto AlterMATivas, três décadas depois (IV)

Estudo de caso


As reflexões depois do projecto: sobre os professores

A conclusão provisória a que cheguei no final do testemunho «070» sobre o contributo que a equipa do AlterMATivas deu para a sua auto-e-ecoprodução profissional destacou (1) as intenções profissionais declaradas (implicitamente, alguns direitos e deveres; explicitamente, os objectivos pedagógicos e as formas de trabalhar, como equipa e com outros actores) e (2) a acção cooperativa concretizada (dentro de cada escola, entre várias escolas e no associativismo docente).
Que outros contributos podem ser encontrados nas reflexões posteriores à conclusão do projecto?

O problema do «projecto»

A opção pelo «projecto» como forma de trabalhar equivaleu a escolher um tipo de «ferramenta organizacional» e implicou a sua gradual construção, em função das necessidades da «acção» e mediada pelas interacções entre os membros da equipa. Foi essa a ferramenta central do AlterMATivas.
Já foram descritas no testemunho «069» as duas fases do projecto, a do seu primeiro ano (informal, cooperativa e intensa) e a dos seus dois últimos anos (mais formal, menos cooperativa e menos finalizante). A Rita e o José Tomás, nas entrevistas que lhes fiz, referiram aspectos que consideraram relevantes nestas duas fases, parecendo-me que a Rita pensou sobretudo no entusiasmo patente na primeira e o José Tomás nalguns aspectos que não correram bem em qualquer delas.

Para a Rita, se os membros da equipa “eram muito diferentes”, isso não impediu que todos tivessem um “papel importante no desenvolvimento do projecto”. O responsável pela maioria dos esboços das fichas de trabalho teve “paciência para aceitar as propostas [de alteração] de toda a gente” e para assumir que podia “riscar tudo o que fez” para fazer “outra coisa”, e isso abriu “uma perspectiva de participação e um à-vontade a participar, que às vezes pode até [ter sido] demasiado.” Ela própria sentiu que poderia estar a exagerar, interrogando-se, a certa altura do trabalho, “«Mas que é isto [...], não faço nenhum em casa, chego aqui e começo a dar palpites para desmanchar aquilo tudo?!»”. Ela tinha estas “características”, sempre com “receio de avançar”, preferindo “pensar” e, por tanto querer “fazer bem”, acabando por não fazer nada!
Mas esse era apenas um dos aspectos do trabalho. Depois de produzidos os materiais, lembrou ela, havia reuniões em que se apreciava o que se tinha passado nas aulas, e “aconteceram coisas de espantar”, “em que a gente contava o que tinha acontecido, porque acho que aquilo era um espectáculo. A alegria com que se chegava lá, toda a gente a querer contar o que é que tinha acontecido, a pachorra que os outros tinham para ouvir tudo, e mais alguma coisa. Quando alguém ía mais à frente, ou mais atrás, portanto os que íam mais atrás aproveitando as coisas que tinham acontecido, pequenos pormenores, «olha, não se pode pôr aquilo ali porque eles fazem, porque eles dizem, ali vão dizer e ali vão fazer», e as pessoas tomavam nota daquilo e depois no outro dia diziam «Olha deu resultado [...]», [...] «Aqui não tiraram as regras da multiplicação», porque faltou não sei mais o quê [...]. Isso era das coisas mais giras que o grupo teve, e de facto era quase terapêutico, digamos, para as pessoas, e a força com que as pessoas saíam de lá para amanhã fazerem outra vez a mesma coisa.

O José Tomás achou ter sido importante que o AlterMATivas tivesse produzido “um conjunto de coisas bastante pensadas”, “não só pela quantidade mas pela diversidade e qualidade”. No entanto, para ele, as propostas de fichas de trabalho foram “demasiado” de “um só”, não houve “espaço” para “desafiar a malta a produzir materiais”, havia quem dissesse que “não era capaz, ou que tinha medo” de apresentar “uma coisa ainda muito tosca”. Poder-se-ia ter comprometido um pouco o “produto final”, concluiu ele, pois talvez tivesse sido “preferível” aceitar o “desafio” de termos mais gente a apresentar propostas de fichas.

Estas opiniões, mais o que já foi escrito acima sobre o AlterMATivas, permitem formar uma primeira ideia sobre a complexidade de um projecto de acção no qual todos os membros da equipa podem ser autores e actores: o surgimento da ideia para o projecto e a sua apresentação, debate, consensualização e escrita; a produção de materiais, incluindo as propostas iniciais e as suas alterações, a escrita (manual e digital), as compras (dos mais diversos materiais), a experimentação, o acompanhamento e o registo; e, por fim, a avaliação e a divulgção, qualquer delas iniciada por uma proposta e prosseguida por recolhas, por debates e por mais escrita. Inevitavelmente, se algumas destas acções podem estar nas mãos de todos, outras estarão nas mãos de apenas alguns.
O que deve então ser um «projecto» para que a equipa que a ele está associada o reconheça como seu?

Coincidindo com o último ano de implementação do AlterMATivas foi publicado em Portugal a tradução de um livro, de Jean-Marie Barbier, intitulado «
Elaboração de Projectos de Acção e Planificação». Nele, o autor escreve: podemos definir o projecto de acção como a imagem antecipadora e finalizante de uma sequência ordenada de operações susceptíveis de conduzir a um novo estado da realidade-objecto da acção.” Apesar de nesta definição parecer não haver oportunidade para o inesperado e para desvio, não é era a posição de Barbier, que, mais adiante, acrescentou: “De facto, tudo se passa como se nos encontrássemos perante  um processo cíclico, iterativo, cuja coerência assentasse menos numa sucessão temporal, que só existe no discurso metodológico, e mais na dependência funcional de cada um desses momentos entre si. Como diz P. Samson, «a démarche de condução de um projecto não é linear, mas recorrente.»” Para o deixar mais claro, Barbier, citando M. Bru e L. Not, realçou o papel que as pessoas têm na condução das acções: “o projecto não significa somente previsão, nem antecipação; projecto é tudo isto, mas é ainda mais: é volição, isto é, empenhamento da pessoa.” E para realçar como os «projectos» apenas particularizam o que acontece no campo muito mais vasto dos «processos», ainda acrescentou: “se existe facto socialmente novo, este não consiste simplesmente numa especificação e numa socialização crescente das démarches de projecto, consiste, sim e muito mais geralmente, na explicitação e na socialização crescentes dos processos de condução das acções.Nota 32

Que se pode dizer sobre o modo como a ferramenta organizacional que a equipa do projecto construíu respondeu aos propósitos do AlterMATivas?
Tal como já descrevi acima, o contexto foi fundamental na génese do projecto: as novas ideias sobre a educação que nos estavam a chegar; o papel da APM na divulgação dessas ideias e o impulso que deu à organização dos professores; o entusiasmo colectivo em torno do recém fundado Núcleo Regional; o conhecimento das experiências de inovação que iam sendo feitas nalgumas escolas. Depois, na primeira fase do AlterMATivas, a ferramenta tanto possibilitou à equipa uma cooperação bastante interessante (na maturação das propostas de materiais a usar nas aulas) como não impediu que entre ela se manifestassem sinais de esgotamento (pelo enorme cansaço que provocou e pelo surgimento de outras perspectivas individuais, sobre o seu próprio trabalho e sobre o trabalho colectivo). Por fim, a segunda fase do projecto não deveria ter começado, se se tiver em conta a contradição entre a responsabilidade assumida perante o IIE e a desagregação do trabalho da equipa Nota 33.

O problema da «profissão»

A primeira escrita versão do projecto AlterMATivas aludiu às questões relacionadas com o exercício da profissão docente Nota 34. E a sua segunda versão especificou algumas das direcções segundo as quais a equipa se propunha responder-lhes (em particular, ao afirmar o direito à iniciativa curricular e organizacional dos professores). Depois, o trajecto concreto do projecto revelou que essas intenções, apesar de formuladas com generosidade, se baseavam numa vontade com diversos limites; a Rita, na entrevista que lhe fiz, colocou uma hipótese e fez uma observação que ajudam a pensar nesses limites.
A nossa “experiência”, disse ela, “merecia ser mais divulgada e merecia, sobretudo, que a gente pegasse naquilo outra vez”, fazendo “outra experiência diferente”. “Nós tivemos o cuidado de ir à frente. Há coisas que [...] podem ser aplicadas, em qualquer situação, em qualquer [...] reforma, os conteúdos são os mesmos e está muito mais de acordo com os princípios da reforma que muita coisa que se faz, agora! Portanto, aquilo está completamente actual.
Mas, como nós não tínhamos decidido retomar o trabalho que fizéramos, a dada altura da entrevista a Rita desabafou: “A reforma matou os projectos!

Hoje, ao voltar a pensar na não continuidade do AlterMATivas, também lamento que não tenha sido possível recomeçá-lo, para o aprofundar. Se essa decisão fosse tomada por uma nova equipa, o seu êxito iria depender da consciência que ela tivesse sobre o contexto em que estávamos, mas não me parece que nós tivessemos essa consciência. Numa conversa entre activistas do Núcleo, tida entre o fim do AlterMATivas e a realização das entrevistas, os participantes não se entenderam àcerca do estatuto que possíveis novos projectos regionais poderiam ou deveriam ter. Uma das teses era a de cada projecto se preocupar apenas com a sua exemplaridade; outra era a de cada projecto manter ligações igualitárias com outros projectos; e uma terceira era a de o Núcleo, ou um projecto suficientemente forte a ele ligado, incentivar a nascença de outros projectos. Esta divergência (já não me lembro de quem defendia cada uma destas teses) mostra a nossa pouca consciência em relação aos contextos em que estávamos imersos.
Na primeira metade da década de 1990 Nota 35 o primeiro contexto importante era determinado pela reforma curricular que se estava primeiro a aproximar e depois a generalizar. A Rita apercebeu-se de como ela nos afectou através dos manuais escolares que começaram a ser publicados: eles eram nossos concorrentes, desvalorizando a importância do trabalho da equipa do AlterMATivas; e sendo manuais muito didacticamente diversos, podiam agradar a todos os tipos de professor.
Como consequência, o segundo contexto, o dos professores com quem trabalhávamos nas nossas escolas, deixara de estar especialmente interessado no apoio que até aí nós lhes tínhamos dado (em especial através do Grupo de Trabalho para o 5º e 7º ano). Apenas alguns professores mais ousados ainda estariam interessados no tipo de trabalho que o AlterMATivas tinha feito; a ansiedade de todos os outros perante a chegada da reforma curricular já desaparecera e o seu papel no ensino-aprendizagem da Matemática voltara à rotina («seguir o manual»).
Um outro contexto era o dos nossos potenciais parceiros do ensino superior. Os que mais genuinamente desejavam um crescimento autónomo da profissão docente sugeriram-nos pistas, vindas da literatura internacional ou das suas cabeças, que eu bem me lembro de achar interessantes (e de as ter profusamente divulgado). Uma dessas pistas foi proposta assim pelo Rui Canário: “Unir, no mesmo processo e nos mesmos actores, a produção social e a produção de sentido implica instituir estratégias de inovação baseadas numa metodologia de apropriação que exigem uma actividade de pesquisa e constituem um processo formativo. É a esta luz, de fusão num processo único das vertentes da inovação, da formação e da investigação que, a nosso ver deverá ser reequacionada a questão do processo de mudança das escolas.Nota 36 Olhando para o AlterMATivas a partir desta proposta, tínhamos sido fortes (e inovadores) na «acção» e, parcialmente, na «formação» (as novas perspectivas  curriculares), mas muito superficiais na «investigação» (apesar do lugar central desta na candidatou ao financiamento pelo IIE: apenas testámos os materiais produzidos). Enquanto a formação acontecera naturalmente, em torno da produção de materiais, a investigação teria exigido um esforço suplementar, e a falta de tempo e de energia tinham-se feito sentir (seria um nova equipa, para um novo projecto, capaz de superar essa falta?)
O contexto associativo (a nível nacional) estava, por outro lado, a alterar-se. Na APM, inicialmente, era bastante natural a proximidade, senão a fusão, entre a inovação, a investigação e a formação. Depois, essa ligação começou a ser quebrada, através da constituição de um grupo de trabalho específico para a investigação e, mais tarde, de outro para a formação, ajudando a separar quem se envolvia numa e noutra e a separar ambas da acção inovadora (ou a submetê-la às suas orientações).
Por fim, os professores envolvidos nos projectos também agiam sobre estes contextos, tendo-se começado a notar posicionamentos diferentes em relação a eles. Portanto, estando todos estes contextos a mudar muito rapidamente (mas quase imperceptivelmente), como resultado do surgimento dos novos currículos, os animadores do AlterMATivas (e do Núcleo Regional), que só muito pontualmente se apercebiam dessas mudanças, estavam a deixar de ter uma perspectiva partilhada que lhes permitisse trabalhar em novos e desafiantes projectos.

Comecei a identificar estas mudanças através da minha tese de mestrado. O seu impacto nos professores é visível nalgumas das seis proposições finais que nela enunciei e que ainda não referi Nota 37.
Duas dessas proposições dizem respeito aos docentes enquanto «pessoa»:
* “Os professores envolveram-se enquanto pessoas na profissão.” Fundamentei esta afirmação nas entrevistas que tinha feito, explicando-a assim: “o jovem professor mobilizou o que já sabia e preferia e interveio do modo como acreditou ser possível mobilizar os saberes e preferências de outros”; mais tarde, este envolvimento prosseguiu, aparentando tratar-se de “envolvimento profissional, por se ter fundido com este”, pelo que “as diferenças entre os percursos dos docentes parecem reflectir mais as escolhas que estes fizeram do que as oportunidades de que dispuseram.
* “O envolvimento profissional dos professores apoiou o seu desenvolvimento pessoal.” Havendo algumas diferenças entre todos, verificou-se, no que era central, uma grande convergência: “A mais importante das consequências pessoais da acção profissional dos professores foi constituída pelo conjunto de transformações das suas capacidades, atitudes e conhecimentos. Se apenas alguns dos professores, como resultado das suas escolhas pessoais, desenvolveram as competências particulares exigidas por certos espaços ou ferramentas, todos, através da sua participação, puderam desenvolver as competências gerais necessárias para o envolvimento na concepção, na intervenção e na regulação exigida pelos processos colectivos.
Das outras quatro proposições, a primeira diz respeito aos saberes profissionais:
* “Os saberes docentes foram desenvolvidos a partir do uso dos espaços e das ferramentas.” De facto, os espaços (como os laboratórios) e as ferramentas (como as manipuláveis) “foram não só os rostos visíveis da acção profissional dos professores como constituíram os eixos que apoiaram os seus principais processos de reflexão e, através destes, de desenvolvimento de saberes”. Pelo que “os saberes dos professores fundamentam-se primeiro nas ferramentas e nos espaços profissionais e só depois, ao terem possibilidade de estabelecer permutas (associativismo, etc.), se desenvolvem conceptualmente (projectos, etc.). Ou seja, os saberes dos professores são processualmente indutivos.
A segunda proposição refere-se às identificações preferenciais dos docentes:
* “A principal relação de identificação profissional dos professores foi horizontal.” Se o relacionamento dos professores com o Ministério da Educação, com a investigação educacional, com a indústria do ensino e com os encarregados de educação gerou “poucas expectativas”, o relacionamento, em contexto associativo, com os “colegas com quem foram partilhados espaços e aperfeiçoadas ferramentas” permitiu a “constituição de um movimento de problematização e intervenção, baseado em intensas interacções e em alguns claros motivos de identificação”. “Houve, porém, uma outra direcção alternativa de identificação, relacionada com a partilha de saberes, o que, por estes serem habitualmente dominados por especialistas, tendeu a favorecer processos de organização verticais.
E as duas últimas proposições focaram os valores partilhados pelos docentes:
* “Os valores partilhados por todos os professores foram a responsabilização e a iniciativa.” Mas alguns dos professores, partindo deles, “elaboraram formulações mais exigentes: a iniciativa da responsabilização conduziu à organização profissional (um dever já anunciado através da exemplaridade da acção); e a responsabilização da iniciativa trouxe a assumpção da palavra (um direito que conduziu à defesa de uma imagem pública para o colectivo).” Para estes professores, foi possível anteciparem-se às “mudanças reformistas centralizadas, desde as que seriam aparentemente mais fáceis de se concretizar deste modo (as relativas aos currículos, à formação contínua, ao apetrechamento das escolas em material didáctico, etc.) até àquelas que raramente são promovidas a partir do exterior (como o enquadramento das actividades extra-curriculares, a promoção de projectos profissionais, o estímulo ao associativismo inter-escolas, etc.).” Mas no final do período analisado (1989-96), “as preocupações com a sobrevivência do direito à iniciativa, associadas ao incremento da definição externa de um conteúdo para o dever de responsabilização, parecem ter provocado algum questionamento à predominância da horizontalidade na identificação profissional.
* “A dinâmica cultural só se consolidou através da afirmação dos seus valores.” Os professores que expressaram a sua “dinâmica cultural” sobretudo “através da acção e da interacção profissional” encontraram dificuldades na afirmação de valores, o que não aconteceu com aqueles que também expressaram “a necessidade de partilha e a importância da iniciativa”; para estes, foi nais fácil “anteciparem mudanças, sobretudo no momento em que o contexto lhes era favorável (caso de as suas ideias convergirem com as reformistas no plano educacional)”; e, “nestas circunstâncias, a articulação entre a organização profissional e a assumpção da palavra foi suficiente para dar início à elaboração de estratégias de desenvolvimento profissional, individuais e colectivas, com efeitos nos espaços, nas ferramentas, nos saberes, nas identificações e nas oposições.

Comentários e propostas

Portanto, os diferentes contextos em que o AlterMATivas decorreu era muito particular: por um lado, o associativismo dos professores de Matemática estava no ponto mais alto da afirmação da sua autonomia; por outro, não previu as consequências das interacções que estavam a ser iniciadas com a reforma curricularDaí que quaisquer conclusões que possam ser tiradas, a partir do estudo do AlterMATivas, sobre a auto-e-ecoprodução da profissão de professor só podem ser «compreendidas» se situadas nesses contextos, embora possam ser consideradas como uma simples «inspiração» para os actuais e futuros pioneiros da docência (tal como os professores envolvidos no AlterMATivas foram).
No entanto, essas conclusões também podem ser consideradas como uma simples inspiração para os actuais e futuros pioneiros da docência, tal como os professores envolvidos no AlterMATivas também foram.

O que foi escrito acima permite então identificar os seguintes campos a considerar na auto-e-ecoprodução da profissão docente:


Por fim, algumas das propostas que o escrito acima e estes campos profissionais sugerem são as seguintes:
* Conceber projectos, por equipas de professores (todos autores e actores), que envolvam num só processo a acção, a investigação e a formação (condições importantes: a inclusão na equipa de professores mais experientes; o apoio estrito das escolas; a perspectiva de aperfeiçoamento do projecto através de novas edições da sua implementação; o eventual recurso a consultores externos, sem que haja transferência da autoria do projecto; a partilha dos resultados com outros projectos, da mesma ou de outras escolas, e a nível associativo; a formulação da exigência, ao Ministério da Educação, de condições adequadas para este tipo de iniciativa).
* Trabalhar, através destes projectos, aspectos como: a inclusão nos currículos das preferências individuais dos alunos, das culturas por eles partilhadas e dos contactos com o exterior da escola; a experimentação de outras formas de organização dos tempos e dos espaços lectivos, bem como dos alunos e das turmas, de modo a compatibilizar a diversidade dos envolvimentos no ensino-aprendizagem.
* Dar especial atenção aos contributos destes projectos para a constituição de um corpo de saberes e de valores profissionais .


Notas finais à IVª parte:

Nota 32: Barbier (1993; citações das pp. 25, 47, 49 e 82, usadas no Relatório Final do AlterMATivas)

Nota 33: Penso que não foi problemática a saída de alguns membros da equipa (ver testemunho «069»), pois teve justificações claras e dadas na devida altura. Os problemas surgiram com a dispersão das atenções por parte de todos os membros que ficaram na equipa (já o referi em relação a mim)

Nota 34: Refiro-me ao anexo com um fotocópia de uma página do Estatuto da Carreira Docente, publicado pouco tempo antes

Nota 35: Fui chegando a estas conclusões através da minha tese de mestrado (Esteves, 1998), do livro que publiquei recentemente (Esteves, 2023) e da escrita deste blogue

Nota 36: Rui Canário (1992; citação da p. 12, usada no Relatório Final do AlterMATivas). António Nóvoa fez uma proposta semelhante (1992; p. 28, igualmente citada no Relatório Final)

Nota 37: Elas figuram no ponto 1.2 do capítulo 7 da tese