[069] Uma apreciação do Projecto AlterMATivas, três décadas depois (I)

Estudo de caso


O Projecto AlterMATivas foi concebido por um grupo de professores de Matemática e por eles concretizado ao longo de três anos lectivos: 1990-91, 1991-92 e 1992-93.
Os professores que estiveram envolvidos na sua concepção foram a Ana Paula Natal, a Filomena Teles, a Lídia Lourenço, o José Tomás Gomes, a Palmira Barroso, o Pedro Esteves e a Rita Vieira, todos leccionando em escolas com 3º Ciclo e Secundário dos concelhos de Almada e Seixal.

Três aspectos contextuais deste projecto tiveram particular relevância na decisão de o conceber e iniciar: a cooperação que os seus autores e outros professores haviam iniciado em 1989-90, no âmbito do então criado Núcleo da Associação de Professores de Matemática nos concelhos de Almada e Seixal; o anúncio de uma reforma curricular, a iniciar, em 1992-93, no 3º Ciclo; e o conhecimento muito genérico do Projecto MAT789, iniciado em 1988-89 e concluído em 1991-92 Nota 1.
Tal como o MAT789, o AlterMATivas pretendia acompanhar grupos de alunos ao longo do 3º Ciclo, experimentando nas respectivas turmas novas formas de abordagem dos programas de Matemática que, então, ainda estavam em vigor.

Descrever este projecto por um dos seus autores, três décadas após a sua conclusão, visa constitui-lo como um estudo de caso que possa ser divulgado junto de quem implementa projectos semelhantes, esperando que a generalização deste procedimento e o consequente debate contribuam para a constituição dos saberes e dos valores da profissão docente.
É por tal corpo de fundamentos não estar ainda codificado e partilhado Nota 2 que este estudo de caso segue uma metodologia indutiva, transformando gradualmente o descritivo em reflexivo e, por fim, em hipóteses proposicionais.

Como o tempo passado desde a conclusão do AlterMATivas  trouxe a possibilidade de o apreciar a partir de um conjunto de questões mais gerais, será a partir destas, e tendo em conta as respostas que os factos lhes derem, que este estudo de caso se organizará. Essas novas questões são as seguintes:
a) Que filosofia pedagógica foi concretizada através da interacção entre alunos e professores?
b) Que resultou da interacção entre os professores e o projecto?
c) Como interagiu este projecto com os seus contextos?

As origens e os contextos do projecto

Cerca de dez anos antes de o projecto AlterMATivas se iniciar foi constituído
, por sócios da Sociedade Portuguesa de Matemática (SPM), o Grupo Para a Renovação do Ensino da Matemática (GREM). Em Junho de 1981 o GREM publicou o n º 1 do boletim «Inflexão», onde destacava duas razões para as suas preocupações renovadoras:
O ensino que temos assenta em duas traves mestras:
– Programas desadequados;
– Modelo de ensino tradicionalmente expositivo (centrado no assunto e no professor).

Pelo que, defendia, era necessário: “Planeamento e organização de módulos de ensino. Elaboração de material didáctico (em especial para ser usado pelo aluno) e de documentação de apoio. Organização de Clubes de Matemática e projectos de acção interdisciplinar. Avaliação e reflexão sobre as experiências efectuadas.

Se apenas alguns dos professores que se viriam a envolver no Projecto AlterMATivas terão tido conhecimento do GREM e dos diversos números do «Inflexão» que foram publicados
Nota 3, é certo que todos conheceram a Associação de Professores de Matemática (APM) e nela se empenharam.
A APM foi
fundada em 1986 por iniciativa dos membros do GREM. E a revista por ela criada, a «Educação e Matemática», foi proporcionando um contacto regular com as ideias surgidas nas experiências de renovação do ensino que então se estavam a fazer: nos seus quatro primeiros números, correspondentes ao ano de 1987, foram publicados 59 artigos; 2 deles focavam o nascente associativismo; 1 abordava a Matemática teórica e 4 a História da Matemática; 5 centraram-se na didáctica teórica, 28 na sua prática em sala de aula, 3 na sua exploração extracurricular e 1 na interdisciplinaridade; 12 referiram-se à reforma educativa em preparação e 3 às perspectivas reformistas internacionais. Com mais de metade dos artigos publicados oriundos das experiências escolares, estes números do «Educação e Matemática» mostram-nos, hoje, como estava a ganhar fôlego o “movimento de mudança” a que Eduardo Veloso e Henrique Guimarães aludiriam quase dez anos mais tarde Nota 4.

A fundação, em 1989-90, do Núcleo da APM nos concelhos de Almada e do Seixal (adiante designado por Núcleo, ou por Núcleo Regional) foi outro sinal desse movimento de mudança, este ao nível associativo. Logo noseu  primeiro ano de existência, três dos professores que viriam a ser autores do AlterMATivas decidiram encetar experiências pedagógicas nas suas turmas do 7º ano, o José Tomás e a Palmira na Escola Secundária Nº 1 do Laranjeiro, em torno da utilização do Geoplano, e o Pedro Esteves na Escola Secundária Nº 1 do Seixal, um pouco sobre todos os temas.
Nesse primeiro ano do Núcleo Regional houve outros professores a ele ligados a implementar experiências pedagógicas, algumas em turmas do Secundário; mas no final do ano lectivo, quando se lançou o desafio de iniciar projectos interescolas em 1990-91, foi entre os professores do 3º Ciclo que o desafio encontrou mais forte resposta.
Os sete professores que aceitaram envolver-se neste desafio iriam leccionar em seis «escolas secundárias», a Anselmo de Andrade, a de Cacilhas, a Emídio Navarro, a Nº 1 e a Nº 2 do Laranjeiro e a Nº 1 do Seixal. No documento fundador, elaborado pelo José Tomás Nota 5, onde já é adoptada a designação «AlterMATivas», afirma-se a pretensão de “estabelecer pontes com a reforma curricular”, em vias de se generalizar, visando responder ao “insucesso registado em matemática” e “motivar os alunos” para a sua aprendizagem, através, por exemplo, da “resolução de problemas”, das “actividades de investigação”, da utilização de “materiais” (manipuláveis), da “máquina de calcular”, do “computador” e do “trabalho de projecto”. Refere-se ainda que o “pano de fundo” inspirador deste projecto era a existência de “algumas experiências ultimamente levadas a cabo” (como o MAT789) e um “conjunto de preocupações gerais” recentemente expressas, que se podiam resumir na afirmação de “a aquisição de conhecimentos, o desenvolvimento de atitudes, o desenvolvimento de capacidades” pressuporem “uma atitude activa do aluno na construção do seu «saber», experimentando, conjecturando, formalizando, abordando os problemas sob diferentes pontos de vista.

Os sete professores que iniciaram o projecto também fazem parte do «pano de fundo» do AlterMATivas. Para os caracterizar, sob o seu ponto de vista, apenas disponho das entrevistas que realizei com três deles, em 1995-96, para fundamentar a minha tese de mestrado, através da qual estudei, precisamente, as iniciativas do Núcleo da APM, entre elas o AlterMATivas Nota 6. Nessas entrevistas Nota 7, tanto a Filomena como o José Tomás descreveram o seu interesse pelo papel das dinâmicas culturais nas aprendizagens escolares (sendo a Filomena também sensível ao papel das dinâmicas pessoais) e, tal como a Rita, lembraram como se tinham envolvido em actividades extracurriculares, em particular as ligadas à informática.
Quanto ao autor deste blogue, destacaria, hoje, o ter associado, durante alguns anos, as aprendizagens escolares quer às dinâmicas profissionais (Empresa Pública das Águas de Lisboa), quer às dinâmicas profissionalizantes (Siderurgia Nacional); e que também estive envolvido em actividades extracurriculares, de carácter lúdico (tal como a Rita).
Para estes quatro professores, cada um deles com uma a duas décadas de experiência escolar, a «sala de aula» não era o único espaço onde se podia aprender Matemática.

O primeiro ano do projecto

Quando o AlterMATivas se iniciou, os seus sete autores leccionavam um total de 15 turmas do 7º ano, em seis escolas.

Para prepararem as intervenções lectivas e para resolverem os problemas organizacionais, estes professores encontravam-se semanalmente, à noite (todos tinham horário exclusivamente diurno), numa das escolas do projecto. Coube-me, durante os três anos do projecto, coordenar esta equipa.

A produção de materiais foi o assunto dominante nesses plenários. De um modo geral, centrava-se na elaboração de «fichas de trabalho», nalguns casos com o apoio de um «material manipulável» (como a calculadora ou o geoplano). Como cada ficha se destinava a abordar um determinado tema curricular, a sua elaboração resultava, muito genericamente, da interacção entre o que se pretendia desse tema, o que se esperava que a ficha ajudasse e os desafios práticos que era necessário resolver.
Algumas destas fichas já tinham sido experimentadas pelo José Tomás e pela Palmira, ou por mim, no ano anterior, ou até há mais tempo. Mas a grande maioria foi elaborada por esta equipa, a partir de muitas ideias com origem externa, transformadas e/ou acrescentadas pelas ideias dos membros da equipa.
As fichas mais interessantes precisaram de vários plenários para serem concluídas, ficando um membro da equipa com a responsabilidade, entre os plenários da equipa, de fazer e refazer as propostas a debater. Quando o conteúdo de uma ficha se tornava consensual, o mesmo ou outro membro da equipa ficava com a responsabilidade de a digitalizar, usando o First Publisher).
Se houve fichas cuja elaboração foi longa (frequentemente incluindo a análise matemática do respectivo tema e, quando era o caso, a experimentação do respectivo material manipulável), também houve fichas rapidamente elaboradas e ainda uma ou outra que um dos professores trouxe e os outros se limitaram a adoptar.
A utilização ou não destas fichas de trabalho, e o modo concreto de as utilizar nas aulas, ficou sempre submetido à decisão de cada um dos professores.

Um exemplo de tema não estritamente lectivo envolvido na preparação destes plenários foi a proposta, redigida em Dezembro de 1990, destinada a iniciar, na “1ª reunião de Março”, o debate sobre os “princípios que caracterizam o nosso trabalho”. A proposta lembrava o documento fundador do AlterMATivas, redigido pelo José Tomás, e sugeria a leitura dos livros de Volker Hole ( «Como Ensinar Matemática no Básico e no Secundário») e de Philip Davis e Reuben Hersh («A Experiência Matemática»), dos artigos de Leonor Moreira e Henrique Guimarães («Situações de Aprendizagem da Matemática - Uma Reflexão Teórica») e da NCSM («A Matemática essencial para o século XXI») e ainda a leitura de um documento da APM conhecido, entre os sócios, por Documento de Vila Nova de Milfontes («Renovação do Currículo de Matemática»). Sugeria-se que tal viesse a apoiar o debate sobre as seguintes questões:
(a) “das três dialécticas referidas na «Reflexão Teórica», a da «acção», a da «formulação» e a da «validação», aquela que mais tem a ver com o nosso trabalho é a «dialéctica da acção»? e as outras duas como e quando surgem? de que modo nos distinguimos do processo clássico de ensino-aprendizagem?
(b) “se os alunos devem construir o seu saber, como responderemos nós à crítica que Karl Popper dirige à educação actual (definida por ele como um conjunto de respostas dirigidas a nenhuma pergunta)?
(c) “sendo esta experiência assumida dentro dos antigos programas com conhecimento dos novos currículos (e de muitas outras ideias interessantes), o que podemos e o que nos propomos modificar como resultado dessa interacção?

O trabalho nas turmas começou um «Inquérito» dirigido aos alunos. O José Tomás e a Rita elaboraram duas versões, cada professor aplicou a que achou mais adequada e as respostas serviram para se trabalhar em Estatística com os alunos (uma ideia vinda do MAT789).
Depois veio o trabalho sobre o «Conjunto N», tema longamente explorado, com muitas fichas a permitir aos alunos começar a usar as calculadoras e a realizar trabalho experimental, gerando uma enorme e prolongada participação (fichas «Com 4 Quatros» e «O rendimento máximo»), o que para alguns, por vontade própria, prosseguia em casa.
Foi também por esta altura que foi distribuída (em todas as escolas?) a «Declaração dos Direitos do Aluno de Matemática», elaborada pelos membros do GREM dez anos antes, e que ajudou a reforçar o clima de confiança na sala de aula. Uma das minhas alunas, a Dulcelina, decidiu acrescentar-lhe os seguintes direitos: “não interromper a aula quando o professor explica uma matéria”; “fazer perguntas sobre a matéria”; “dizer que não percebi a matéria”; “ajudar o parceiro num problema”; “estar atenta na aula”. E resumiu assim a sua visão sobre a aprendizagem desta disciplina: “A matemática são números a correr mas quando chega o dia do teste é um grande quebra cabeças”.

Não me recordo quando nem como surgiu a ideia de candidatarmos o AlterMATivas ao financiamento proporcionado pelo 3º Concurso Nacional de Projectos «Educar Inovando / Inovar Educando», promovido pela Instituto de Inovação Educacional. Mas está documentado que o plenário em que lemos e aprovámos o texto da candidatura ocorreu em Abril de 1991, depois de terem sido realizados alguns debates sobre isso em plenários anteriores (tendo um deles provavelmente terá sido a «reunião de Março», para a abordagem das questões propostas em Dezembro).
Para a candidatura, designámos o projecto como “AlterMATivas - Alternativas no ensino-aprendizagem da Matemática” e definimos assim o “problema de partida” e as “hipóteses gerais a testar”:
a) O processo de ensino-aprendizagem da Matemática está, actualmente, centrado sobre a aula. Decorre da experiência dos autores que esta é limitada pela rigidez dos espaços temporal (duração e horário) e físico, pela presença de um elevado número de alunos que não têm nem momentos de concentração coincidentes nem ritmos e formas de aprendizagem iguais e pela existência de um programa anual condutor das actividades, tanto mais ultrapassado quanto se está em vésperas da sua substituição.
b) É convicção da equipa proponente do Projecto que a existência de materiais estruturados pode apoiar as heterogeneidades de ritmo e de forma de aprendizagem dos alunos (ao mesmo tempo que constituem um desafio à construção do seu próprio saber) e que o facto de esses materiais serem produzidos pelos professores pode favorecer, da parte destes, uma atitude interventiva na transição dos velhos para os novos programas.
A metodologia de trabalho que a equipa considerou estar e dever continuar a seguir era a “investigação-acção” e assumiu-se que deveríamos prosseguir a ideia inicial de acompanhar os mesmos alunos do 7º ao 9º ano (portanto, o projecto deveria prosseguir por mais dois anos).
Foram enviadas, em anexo, cópias das fichas já elaboradas, ficando explícito que continuaríamos não só a produzir como também a melhorar os “materiais” necessários para “cada tema” do 3º Ciclo (“fichas de trabalho, software, materiais manipulativos”), incluindo nessa melhoria as “variantes adequadas” a cada escola.
Um pouco antes das férias de Verão soubemos da aprovação da nossa candidatura. E soubemos que o projecto seria financiado com 500 contos.

Os principais descritores do projecto

A equipa

Logo no início do primeiro ano do projecto a Cristina Fonseca juntou-se à equipa; e alguns meses depois a Ana Paula Natal decidiu dela deixar de fazer parte, para, segundo nos disse, poder “trabalhar à sua maneira” (manteve-se em interacção com o Núcleo da APM).
No final do primeiro ano também a Lídia Lourenço e a Palmira Barroso deixaram de pertencer à equipa, a primeira por tido ido leccionar na Faculdade de Ciências e Tecnologia (Monte da Caparica) e a segundo por ter começado a leccionar, em exclusivo, o Secundário.
No segundo e terceiro anos, a Margarida Barral, inicialmente colega da Cristina Fonseca, também se juntou à equipa. E no terceiro ano a Filomena Teles e a Rita Vieira não tiveram turmas envolvidas no projecto, mantendo-se, no entanto, a ele activamente ligadas).

Ao longo dos três anos, as turmas envolvidas no projecto, por escola e por professor, foram as seguintes (a seta 
indica quantas turmas tiveram continuidade de um ano para o seguinte):

Notas inseridas neste quadro:

(a) Segundo a Filomena, todo o 7º ano da sua escola, no total de 8 turmas, esteve sob influência do AlterMATivas (três formandos, cada um com 1 turma, mais a Cristina Neto com 4 turmas); os formandos usaram todas as fichas sobre N, Z e Q, nada mais lhes tendo acrescentado, mas tenderam a inverter a ordem metodológica, apresentando primeiro a teoria, usando depois as fichas como aplicação.
(b) Segundo a Rita, algumas das fichas do AlterMATivas foram usadas em diversas turmas da sua escola, sobretudo os «Gráficos de alguns fenómenos».
(c) Segundo o José Tomás, as fichas e os materiais do AlterMATivas foram esporadicamente usados na sua escola.

Este quadro mostra que, no primeiro ano do projecto, oito professores leccionaram 15 turmas do 7º; que, no segundo ano, seis professores leccionaram 4 turmas do 7º e 11 do 8º; e que, no terceiro ano, quatro professores leccionaram um número indefinido de turmas do 7º e do 8º e 2 do 9º.

Foi registado que, do primeiro para o segundo ano, a continuidade pedagógica abrangeu 125 alunos; e que do segundo para o terceiro ano apenas abrangeu 11 alunos (aliás, os únicos com continuidade pedagógica ao longo dos três anos em todas as escolas). As escolas, ou também os próprios professores envolvidos, não cuidaram adequadamente dessa continuidade.

Fica assim claro que, de ano para ano, a diversidade de desafios aumentou e o número de professores a leccionar diminuiu. Mas também se sabe que a frequência dos plenários da equipa pouco ou nada decresceu: continuou a ser cerca de um por semana.
Para compreender a complexidade dos envolvimentos da equipa é ainda necessário acrescentar às preocupações específicas do projecto as que surgiram, durante o seu segundo ano, com um grupo de trabalho criado para apoiar os colegas do 2º e do 3º Ciclo de Almada e Seixal que se estavam a iniciar no leccionamento dos programas da chamada Reforma de Roberto Carneiro. A equipa não foi consensual quanto ao modo de prestar este apoio, mas ele foi, de facto, prestado. Através de um «Grupo de Trabalho do 5º e do 7º anos» foram organizadas, ao longo de 1991-92, nove sessões abertas a quem nelas quisesse participar (total: 30 horas), tendo nelas sido apresentadas ideias sobre a didáctica (incluindo as fichas de trabalho já elaboradas) e sobre o uso das calculadoras (a sua utilização tinha começado a ser recomendada) e promovido o debate sobre as primeiras experimentações dos temas curriculares nas diversas escolas.
Participaram em pelo menos uma dessas sessões 76 os professores, de 25 escolas do 2º e do 3º Ciclos; 25 estavam especialmente interessados no 5º ano, 44 no 7º e os outros 7 não tinham, nesse ano lectivo, ligação a estes níveis de ensino. O número médio de sessões em que estes professores participaram situou-se entre as 2 e as 3 (para uns terá sido um contacto pontual; e para outros um contacto duradouro).

Os materiais

As fichas de trabalho foram o eixo que permitiu aos membros da equipa do AlterMATivas estabelecer uma base pedagógica comum, mantendo cada professor uma interpretação própria sobre a respectiva concretização.
Das 63 fichas que foram recenseadas apenas 2 não terão sido debatidas nas sessões plenárias da equipa. E mais de metade foi produzida durante o primeiro ano do projecto, cabendo ao último ano uma produção residual:


Mais notável do que este desequilíbrio entre os três anos foi o desequilíbrio entre os que estiveram envolvidos nas propostas iniciais das fichas: dos nove professores que leccionaram no âmbito deste projecto, um não esteve envolvido na proposta de qualquer ficha, dois em apenas 1 ficha, um em 2 fichas, um em 3 fichas, um em 4 fichas, um em 5 fichas, um em 9 fichas e um último em 43 fichas.

A maioria destas propostas eram primeiro redigidas (e por vezes desenhadas) à mão, fotocopiadas e distribuídas aos restantes membros da equipa, para debate nas sessões plenárias, onde, após maior ou menor transformação, eram aprovadas.
Depois, a digitalização esteve sobretudo a cargo de quatro dos professores Nota 8. Usava-se uma das versões do First Publisher disponibilizada pelo Projecto Minerva, gravava-se em disquetes e imprimia-se para cada um dos membros da equipa e para arquivo. Por fim, quem decidia lecionar com o apoio de uma determinada ficha encarregava-se de a fotocopiar para os seus alunos na respectiva escola.
A grande maioria das propostas de fichas inspirou-se em livros e artigos de divulgação, e também em manuais escolares, e foi frequente uma ficha resultar de diversas destas inspirações, mas também dos contributos mais ou menos transformadores de dois ou mais dos membros da equipa (as várias ideias eramm articuladas num conceito único). Talvez apenas uma dúzia das fichas (cerca de 20 %) tenha dispensado totalmente (ou quase totalmente) essa inspiração externa.
Esta aparente dependência em relação ao exterior pode ser interpretada como um sinal de «autonomia», ou seja, como a capacidade de procurar recursos para as suas próprias produções. Isso foi visível, por exemplo, no modo como a equipa transformou a ficha «Esta Carola não pára!», recebida  como “jogo”, em “actividade”, tendo-lhe ainda acrescentado um “prolongamento «para casa»”. E foi ainda mais claro nas indicações, escritas na altura, para que as fichas destinadas à «resolução de problemas» se abrissem à «colocação de problemas» pelos alunos.

Nalguns casos as fichas não foram a única ferramenta envolvida, como aconteceu quando foram utilizadas calculadoras, jogos e materiais manipuláveis. Algumas notas escritas, muito esquematicamente, na altura, lembram como se procurou articular a «produção central» destas outras ferramentas com a sua «produção local» Nota 9:
HEX DA MULTIPLICAÇÃO e HEX DA DIVISÃO: “centralmente, produção de um tabuleiro de papel com as regras; localmente, reprodução e protecção dos tabuleiros (p. ex., plastificando) e produção (p. ex., em vinil) ou aquisição de peças, em nº suficiente para pelo menos uma turma”; “é necessário meter umas tantas cópias dentro de capas de plástico transparente e fabricar peças de duas cores em número suficiente, ou usar grão e feijão, ou ...
JOGO DO ZERO: “centralmente, produção das regras e de um exemplar em papel das cartas; localmente, reprodução, corte e protecção das cartas, em nº suficiente para pelo menos uma turma”;
GEOPLANOS: “em grupo, elaboração das regras de construção; centralmente, aquisição de madeiras cortadas, pregos e elásticos; localmente, construção, com ou sem ajuda dos alunos, em nº suficiente para pelo menos uma turma”;
BILÁTEROS ARTICULADOS (um material criado sem qualquer inspiração exterior, para abordar a «desigualdade triangular»): “em grupo, concepção do material; centralmente, produção de protótipos e de regras de construção e aquisição de matéria prima para a construção; em grupo, construção para cada Escola, em nº suficiente para pelo menos uma turma”.


O AlterMATivas teve interacções nada negligenciáveis com o projecto MATlab, iniciado em 1991-92, também com financiamento do Instituto de Inovação Educacional. Isso deveu-se ao facto de todos os autores do AlterMATivas também serem proponentes do MATlab, tendo neste projecto plena oportunidade para concretizar as suas convicções sobre a importância pedagógica dos espaços extracurriculares.
Essas interacções não se basearam nos «jogos» (excepto muito pontualmente), mas sim nas ideias associadas a um conceito que o MATlab ressuscitou, o «Laboratório de Matemática». Foi disso exemplo a série elaborada na Nº 1 do Seixal sob a designação «Desafios Matemáticos», que tanto entrou algumas aulas («Cálculo de P»), como as prolongou (voluntariamente) pelos tempos livres dos alunos («Com 4 Quatros», «O rendimento máximo»), como ainda foi a base de trabalho extracurricular do Grupo de Investigação em Matemática («Tira de Möbius»), o qual funcionou, aberto a todos os alunos do 3º Ciclo naquela mesma escola, em 1992-93.

Cada um das fichas elaboradas no âmbito do AlterMATivas (ou do MATlab) pode ser encarada como uma «ferramenta» que incorporava não uma didáctica estrita, mas  uma nuvem de potencialidades didácticas, em torno de uma ideia central, sem impor qualquer delas. Uma das facetas dessa «ideia central» foi a aposta de alguns membros da equipa para que “a teoria surgirá como o culminar de várias experiências dos alunos”; mas, mais geralmente, pode-se dizer que aquilo que uniu as variantes pedagógicas que terão sido escolhidas pelos diversos membros da equipa foi « a acção dos alunos, a reflexão apoiada nessa acção e a coordenação pelo professor».
No entanto cada ficha também deverias ter em conta a ordem pela qual era utilizada, como não se verificou com os formandos da Filomena, que interpretaram conservadoramente essa ordem, apresentando primeiro a teoria e usando depois as fichas como oportunidade para a sua aplicação.

Muitas das fichas de trabalho produzidas pela equipa do AlterMATivas foram sendo divulgadas, ao longo dos três anos em que este projecto foi implementado, a colegas de escola, do Núcleo e da APM, e ainda a outros, ou por iniciativa de cada membro da equipa, ou no contexto de diversos intervenções de divulgação do projecto Nota 10.

As didácticas

A forma como cada ficha de trabalho (e os seus eventuais materiais auxiliares) foi usada como suporte para a interacção entre um professor e os seus alunos dependeu, portanto, de quem nela esteve envolvido, dentro da plataforma pedagógica que havia sido consensualizada pela equipa.
Consultando as fichas produzidas e os comentários feitos durante a sua elaboração e utilização, apresento a seguir (por ordem alfabética) alguns exemplos do modo como eu vi essa utilização:

Abstração (contacto com exemplos concretos, preparatórios da conceptualização e da simbolização): «Positivos, Zero e ... Negativos!»; «Multiplicação em Z»; «Adição de polinómios»; «Multiplicação de polinómios»; «Factorização de polinómios»;
Algoritmização (participação na construção de um algoritmo): «Regras e Algoritmos na Resolução de Equações do 1º Grau»;
Aplicação (ou sob a forma de um problema, ou utilizando um conceito já aprendido): «Jogo do Zero»; «Múltiplos e divisores»; «Aplicações: múltiplos, divisores, mmc e mdc»; «Aplicações do menor múltiplo comum»; «Variedades em Q»; «Jogo das isometrias»; «Aplicações do Teorema de Pitágoras»;
Cálculo (com máquina): «Estudo da raíz quadrada de 2»; «Em Q, ... em R»; «Do Universo ao Átomo»:
Classificação (através: de fluxograma, de diagrama de Ven, de tabela): «Equações do 1º grau»: «Triângulos»; «Polígonos»; «A linguagem da Matemática»; «Casos notáveis da multiplicação»;
Conjecturação (formulação de uma hipótese): «Tabela da adição»; «Tabela da multiplicação»; «Padrões / Múltiplos»; «Adição em Q+»; «Multiplicação em Q+»; «Variedades em Q»; «Teorema de Pitágoras no geoplano»;
Construção (com o Tangram): «Construção de polígonos»; «Polígonos semelhantes»; «Uma demonstração do Teorema de Pitágoras»;
Demonstração (entre o informal e o minimamente formal): «Operações elementares» (quebra-cabeças); «Pares e ímpares na adição»; «Uma demonstração do Teorema de Pitágoras»; «Propriedades das operações com potências de expoente em N»;
Descrição (através: de gráficos, de tabelas, da estatística): «Inquérito»; «Positivos, Zero e ... Negativos!»; «Q+: representação e ordenação»;
Desenho (em papel; no geoplano): «Elementos de Geometria»; «Polígonos»; «Polígonos semelhantes»; «Perímetros e áreas de alguns polígonos»; «Composições e partições»; «Uma demonstração do Teorema de Pitágoras»;
Estimativa (associada quer ao cálculo, quer às medidas): as duas «Carolas»; os dois «Hex»»; «Procurando a pontuação máxima»; «Elementos de Geometria»;
Experimentação (por vezes assumindo a forma de um desafio; de modo a conhecer algoritmos, a optimizar resultados, etc.): «O crivo de Eratóstenes»; «Algoritmos: mmc, mdc e outros»; «O rendimento máximo»;
Generalização (transição dos casos particulares para o caso geral): «Elementos de Geometria»;
Globalização (contacto inicial com o caso geral antes de abordar casos particulares): começar pelos polígonos antes de trabalhar com os triângulos;
Interdisciplinarização (pontes: com temas de outras disciplinas; com o quotidiano): «Positivos, Zero e ... Negativos!» (Economia; Física; Geografia; História); «Regras e Algoritmos na Resolução de Equações do 1º Grau» (Biologia; Electrotecnia; Física); «Elementos de Geometria» (Geografia); «Gráficos de alguns Fenómenos» (Economia; Física; Geografia; História; desporto, quotidiano); «A linguagem da Matemática» (História); «Lei do anulamento do produto» (Física); «Do Universo ao Átomo» (Astronomia; Física);
Intradisciplinarização (pontes entre temas matemáticos): «Elementos de Geometria» (Estatística); «Gráficos de alguns Fenómenos» (Geometria; Metrologia); «Gráficos de alguns Fenómenos» (Álgebra);
Medição (uso: de uma régua, de uma fita métrica, de um transferidor): «Elementos de Geometria»; «Uma demonstração do Teorema de Pitágoras»; «Em Q, ... em R»;
Modelização (quando à experimentação e conjecturação se seguiu a formulação de uma lei): «Gráficos de alguns fenómenos»;
Observação (da realidade, para a descrição / matematização; das ferramentas matemáticas, para a sua compreensão): «Não confundas + com x!»;
Refutação (preparação para o rigor da demonstração): «Números primos».


A reacção dos alunos à utilização de fichas de trabalho e de materiais manipuláveis foi, maioritariamente, boa.
Para alguns terá sido claro que se tratava de algo inédito (ainda o 1º período do 7º ano estava a decorrer e um aluno comentou, ao constatar que havia chegado mais uma ficha, que a sua turma estava a ser alvo de “mimos”).
As primeiras actividades do 7º ano foram, aliás, bastante motivadoras, porque experimentais e sem pressa de «avançar na matéria»: isso notou-se no enorme sucesso colectivo da pesquisa para a composição de números naturais através de operações envolvendo quatro quatros; e, pouco depois, do sucesso de «O rendimento máximo».
Aqui e acolá surgiram alunos que, individualmente, em casa, melhoraram aspectos de uma ficha (em Cacilhas, um corrigiu a posição da capital dinamarquesa no mapa que figura logo na primeira página dos «Elementos de geometria»).
Mas a reacção qualitativamente mais interessante terá sido a de alguns alunos que (talvez tendo já falado antes, entre si) se dirigiram ao seu professor para reclamar, com alguma veemência, “menos perguntas” nas fichas, para que eles tivessem oportunidade de colocar as suas.

Numa das escolas do projecto foram feitos dois inquéritos destinados a conhecer a opinião dos alunos sobre a forma de trabalhar, o primeiro no final de 1990-91 (recolhendo 47 respostas de alunos do 7º ano) e o segundo no final de 1991-92 (recolhendo, conforme os itens, de 62 a 68 respostas de alunos do 8º ano, a maioria participantes no primeiro inquérito). Em qualquer deles solicitava-se a valoração da forma de trabalhar nas aulas, desde o «1» a mais fraca) ao «5» (a mais forte):

1º inquérito (as «modas» estão destacadas a azul; e, caso iguais ou superiores a 50 %, a amarelo):


Da valoração «1» para a valoração «5», cresce a preferência dos alunos pelo «trabalho de grupo», pelo «diálogo entre a turma e o professor» e pelos «jogos».
O «trabalho em casa» e os «testes» quase não têm uma valoração preferencial.
O «livro escolar» tem uma valoração assimétrica, para o negativo, em torno da moda «3».
E o «trabalho individual», as «idas ao quadro», as «fichas de trabalho» e a «avaliação por outros meios» têm uma valoração assimétrica, para o positivo, em torno da moda ou «3» ou «4».

2º inquérito (as «modas» da «realidade» estão destacadas a azul; e os casos em que o «ideal» supera a «realidade» estão a vermelho):


Segundo estes alunos, deveriam ter sido mais utilizados a «régua, a fita métrica» e o «transferidor» e realizadas mais «pesquisas» e mais «trabalho de grupo» fora da aula (todos estes casos têm moda «3»).
A utilização do «geoplano e das «fichas de trabalho» (modas «4»), da «calculadora» (moda «5») e da «resolução de problemas (moda «3 / 4 / 5») deveria ter sido um pouco maior, embora alguns alunos considerassem que deveria ter sido menor.
E a «utilização do livro escolar» (moda «1 / 2») deveria ter sido bastante maior (o manual escolar tinha sido adquirido pelos alunos e o professor destas turmas não solicitou muito o seu uso).

Foi também inquirido se o o «número de perguntas» incluídas nas fichas de trabalho seria ou não adequado. E as respostas foram:
- nº adequado                                                                           43 %
- deveria haver mais, para conduzir o trabalho                         9 %
- deveria haver menos, para os alunos colocarem as suas       25 %
- há casos com excesso, e outros com carência                       24 %.

O sucesso

Só existe uma visão conjunta do sucesso escolar obtido com o projecto AlterMATivas no que respeita ao seu  primeiro ano, 1990-91, ou seja, anteriormente aos dois anos financiados pelo Instituto de Inovação Educacional.
No final desse ano, numa das reuniões da equipa, foi feito um apanhado dos resultados escolares dos 272 alunos do 7º ano que compunham 10 das turmas envolvidas no projecto e que tinham sido avaliados no final do 3º período. 241 haviam transitaram para o 8º ano e 227 tinham tido positiva a Matemática, independentemente de terem ou não transitado.
Portanto, o sucesso escolar (para que o projecto apenas contribuía, pois também dependia de outros professores) foi de 89 %: e o sucesso em Matemática foi 83 % (valores arredondados à unidade mais próxima).
Não foram feitos recenseamentos semelhantes nos finais de 1991-92 e de 1992-93.

Não foram acima considerados os casos dos alunos que abandonaram os estudos, pois a obrigatoriedade de frequência do 3º Ciclo só foi sendo iniciada à medida que a Reforma de Roberto Carneiro se generalizou ao 7º, ao 8º e ao 9º anos, tendo o AlterMATivas ocorrido de um para outro destes níveis sempre nos anos lectivos imediatamente anteriores a essa generalização.


Notas finais à Iª parte:

Nota 1: o MAT789 deu origem à tese de doutoramento de Paulo Abrantes (defendida em 1994; publicada em 1995)

Nota 2: o Movimento de Escola Moderna possui um corpo próprio de saberes e valores; além deles, existem ainda outros contributos, dispersos, muitos deles (sobretudo os mais recentes) sujeitos a hegemonização pelos saberes e valores académicos; faltam a todos estes contributos a circulação e o debate abertos a todos os professores do ensino não superior

Nota 3: o último «Inflexão», o nono, foi publicado em Setembro de 1986

Nota 4: «Dez anos de Encontro». Lisboa: APM (1996; p. 2)

Nota 5: «Projecto de abordagem ao programa do 7º ano unificado». Este documento, de duas páginas, tinha ainda três anexos: propostas que estavam em discussão sobre os novos programas; artigo de Paulo Abrantes sobre a avaliação dos alunos; e um extracto do Estatuto da Carreira Docente (fotocópia da primeira página da legislação, onde estão expressos todos os artigos correspondentes aos “direitos profissionais” dos docentes: o da participação, o da formação e informação, o do apoio técnico, material e documental e o da segurança)

Nota 6: «Ensinar Matemática em Subúrbia (1989-96). Estudo de caso sobre um grupo de professores». Lisboa (1998), APM

Nota 7: estas entrevistas foram resumidas, para este blogue, nos testemunhos «050», «060» e «068»

Nota 8: é possível aceder a quase todas estas fichas de trabalho, em formato PDF, através da página «Documentos» (pasta «AlterMATivas») deste blogue

Nota 9: a dada altura do AlterMATivas procurou-se descrever a forma como era feita a elaboração colectiva das fichas de trabalho, tendo sido distinguidas as seguintes situações:
“«em grupo» - quando o trabalho foi feito (pelo menos potencialmente) por toda a equipa do Projecto, durante uma ou mais reuniões;
«centralmente» - quando o trabalho foi feito para todos por um só elemento (ou por um pequeno grupo) da equipa;
«localmente» - quando o trabalho foi feito a nível de Escola, para essa Escola, pelos Professores dessa Escola.

Nota 10: a produção das «fichas de trabalho» correspondia ao defendido, em 1981, no Nº 1 do boletim «Inflexão» (“Planeamento e organização de módulos de ensino. Elaboração de material didáctico (em especial para ser usado pelo aluno) e de documentação de apoio. [...]”) e que o AlterMATivas, desde o seu primeiro documento fundador, também defendi (“uma atitude activa do aluno na construção do seu «saber», experimentando, conjecturando, formalizando, abordando os problemas sob diferentes pontos de vista.”)

[068] Os primeiros anos da Filomena Teles como professora

Memórias

Eu acho que as coisas às vezes acontecem na vida das pessoas por acaso”, disse-me a Filomena, logo no início da entrevista que lhe fiz, em Novembro de 1995, “há um acaso feliz que leva as pessoas a correrem” e “«olha! pode ser que seja isto»”.

Entre dois estágios

Quando acabou os estudos no Secundário a Filomena escolheu Medicina, esteve em Medicina, e depois mudou para Matemática “por problemas unicamente familiares”: “tinha que fazer uma coisa mais rápida e escolhi a Matemática porque pensei, bom, para ser rápido e não fazer aquilo que eu quero, vou fazer uma coisa que em princípio no Secundário nunca tinha tido grandes problemas ... e achava interessante”. Mas esta escolha não foi com a intenção de vir a “ser professora”, mas sim “para trabalhar em Matemática Aplicada”.
A meio do curso deu-se o 25 de Abril, com todas aqueles desafios “sociais que se colocaram e que mexem um bocado connosco, e que na altura, no final do meu curso, criaram imensos problemas de se conseguir emprego na área da Matemática Aplicada”. “Então aconteceu-me a mim o que aconteceu a muita gente nessa altura, que foi, eu preciso de um emprego, preciso de trabalhar, e vou dar aulas.” Mas nem sabia, nem imaginava o que é que seria”.
Entrou para o ensino em Maio de 1976, para dar Francês”. No ano seguinte, 1976-77, colocada numa escola do Ciclo Preparatório, leccionou Matemática e Ciências Naturais. E só em 1977-78, desta vez na Veiga Beirão, em Lisboa, apenas leccionou Matemática, à noite, pois durante o dia precisava de fazer o estágio em Matemática Aplicada, num Banco. A Veiga Beirão “era uma escola extremamente convencional, com imensas lutas lá dentro”, “foi um ano muito quente e havia reuniões gerais de professores todos os dias, enfim, grandes polémicas, lavajens de roupa suja e não sei quê - nada que levasse, até ali, a estar atraída pelo ensino”.

Assim, para a Filomena, ir ensinar foi “porque a pessoa precisa de dinheiro, mas depois, quando a pessoa começa a pensar, e começa a estar por lá”, vê “o que é dar aulas, o que será provavelmente ser professor”, e aí é que se coloca a questão se eu fico por aqui ou se eu me vou embora”.
Foi “por acaso, não por um projecto de vida que eu tivesse definido e que tivesse seguido, mas um bocado porque as coisas vão acontecendo.

Como por essa altura começou a profissionalização em exercício (uma modalidade de formação inicial para professores que já estavam a ensinar, e que decorria totalmente na escola), a Filomena decidiu-se pelo estágio, mas quis fazê-lo fora de Lisboa, tendo sido colocada em Faro, em 1978-79.
Quando o terminou ela ainda não tinha decidido se optaria exclusivamente pela docência, pelo que regressou a Lisboa para concluir o estágio científico, em 1979-80, acumulando-o com aulas em regime misto, uma turma de dia e as restantes à noite, numa escola próxima, a Dona Maria Iª. Esta experiência também não lhe trouxe razões para se decidir definitivamente sobre o seu futuro.

Almoço do primeiro dia 1º Encontro Regional de Professores de Matemática,
na Escola Secundária do Seixal, em Julho de 1991: a Filomena é a segunda a contar da direita

Contacto com escolas «diferentes»

Em 1980-81 a Filomena foi colocada na margem Sul, onde se manteria até ao fim do seu percurso profissional. Tratava-se da Escola Secundária da Amora, uma escola nova, com professores também muito novos, e talvez por isso o ambiente era diferente dos que ela conhecera nas escolas por onde tinha passado em Lisboa e em Faro: “havia um grupo de pessoas que se mexia e que tentava fazer qualquer coisa lá dentro” (alguns estavam na profissionalização em exercício) e isso levou-a a começar a ver a escola de uma forma diferente.

No ano seguinte, 1981-82, foi colocada na Escola Secundária Nº 1 do Laranjeiro, onde esteve dois anos. A perspectiva que se lhe começou a abrir sobre “o que poderia ser a escola, do que era a escola, do que devia ser a escola [...] mexeu um bocado comigo, porque a ideia que eu tinha de escola era a escola que eu tinha frequentado [como aluna], que era o Liceu Dona Filipa, [aonde] eu ia, tinha as minhas aulas e vinha para casa, havia lá umas actividades circum-escolares [...] mas [...] não havia uma dinâmica de escola, [e a Nº 1 do Laranjeiro] foi de facto a escola que mexeu comigo, e é isso no fundo que me levou depois, nessa fase, a fazer um balanço e a pensar que se calhar é aqui que eu quero [...] estar, porque há outras compensações na vida que não sejam o dinheiro e que não sejam [...] uma carreira reconhecida, [...] mas para mim nem era o problema da carreira, era [...] ser um trabalho que mexe com o raciocínio”; e a “informática”, a “programação”, etc., “foram coisas, provavelmente por defeito de formação, por ser uma formação em Matemática”, que mexiam com ela, por gostar de “resolver problemas”, de “fazer um programa para resolver uma situação”.
Se essa foi a razão pela qual a Filomena decidiu continuar a leccionar, o seu “percurso a partir daí é um envolvimento sobretudo mais nas actividades extra-aula”, “não é a aula de Matemática em si, mas é o resto.
Foi aí, no Laranjeiro, que ela se começou a envolver nos jornais escolares. Na altura não havia computadores nas escolas e por isso o jornal “mexeu com vários grupos disciplinares, mexeu com a Educação Visual, para a maquetagem, [...] os miúdos [tinham de procurar] notícias [e] esta era uma actividade que permitia mexer imenso com a escola e que me levou no fundo a contactar com os miúdos e a vê-los de forma diferente, do que eu poderia vê-los na aula de Matemática, porque eu penso que o professor de Matemática, [...] por causa do tema da aula, é provavelmente dos professores todos o que se calhar tem mais dificuldade em conhecer os alunos no sentido de que [...] os temas que foca não são muito propícios a outros tipos de conversa. Penso que um professor de línguas ou um professor de História, ou um professor até de Biologia, porque as coisas estão mais ligadas à vida e tal, provavelmente conseguem mais facilmente extrapolar para o dia-a-dia e conhecer melhor os miúdos, e portanto, para mim acaba por ser um contacto com os alunos a nível diferente e a tentar ver o professor como não só aquele indivíduo que tenta arranjar as melhores estratégias para o aluno saber Matemática, ou conhecer a Matemática, ou trabalhar dentro da Matemática, mas tentar ver o aluno como um indivíduo que no seu todo está a crescer, e há uma série de coisas que mexem com ele, e que se calhar a Matemática é importante mas não é assim tão importante.

O primeiro conflito cultural

Depois de dois anos no Laranjeiro, a Filomena foi colocada no Pragal. Aí conheceu a Ângela Queiroz, que lhe falou num projecto que estava para começar, o Minerva, “e que metia o Spectrum, ela tinha um Spectrum em casa, já, e eu, na altura, como já vinha com o bicho da informática, [...] é evidente que não foi muito difícil [...] começar a mexer com isso.” Mas o Pragal ficou-lhe na memória sobretudo por “um grande projecto”, que ela a Ângela e mais gente desenvolveram, o “Grupo de Intervenção Cultural”. A escola estava a atravessar uma fase muito má, e nós “decidimos pegar nos professores da escola que de facto estavam dispostos a fazer coisas”, eles aderiram e “houve imensos clubes a funcionar, houve o jornal, houve a informática, houve dança, houve teatro”, “sem exagero, umas sete ou oito áreas a funcionar e no fim do ano fizemos um sarau com todas as actividades que a escola tinha a funcionar e não só.” “Fomos [também] à procura de actividades que os miúdos desenvolviam fora da escola, que nós nem sabíamos, e que achámos que era interessante as que pudessem estar no palco [...] para as pessoas saberem [...], por exemplo, o jogo do pau, havia uma data de miúdos a fazer o jogo do pau e que tinham essa actividade fora da escola”. Com essa iniciativa, e apesar de a escola ser “extremamente convencional”, conseguiram implicar o Conselho Directivo e o Conselho Pedagógico. O “sarau não foi feito na escola, foi feito numa colectividade, foi na S.R.U.P. [Sociedade Recreativa União Pragalense], e havia um certo pudor dos professores de irem até ao S.R.U.P., porque o S.R.U.P, enfim, era frequentado por gente, enfim, de camadas muito baixas [...], quando nós fomos falar com o S.R.U.P. o S.R.U.P. ficou surpreso connosco, de os professores estarem interessados numa coisa daquelas, mas eles de facto tinham um palco, [...] e foi a primeira vez que isso aconteceu, ou seja, a escola saíu fora [...] das suas paredes, foi ali para o S.R.U.P, que é mesmo ao lado, mas o que é facto é que os professores da escola [...] ficaram surpresos com aquilo que viram”; “tínhamos um grupo de teatro muito bom na escola, porque tínhamos a Maria Santos à frente”, “e as pessoas não imaginavam o nível que os miúdos da área de Teatro (porque nós tínhamos a área de Teatro no 9º ano) atingiam. Digamos que foi uma maneira de as pessoas, elas próprias professoras, de verem a escola de uma forma diferente, porque os miúdos de facto tinham outras actividades fora da escola, [...] que fazem parte da formação dos miúdos, [havia um] mundo paralelo à escola que o professor de uma forma geral ignora.
Mas isso foi uma coisa que deu um bocado cabo de nós, porque nós para fazermos isso tudo, se por um lado conseguimos envolver muita gente, por outro lado tivemos que sustentar muitas guerras, foi, é horrível mas é verdade, desgastou-nos um bocado, e nós saímos um bocado as duas, eu e a Ângela, um bocado aborrecidas do Pragal, porque achámos que tínhamos dado muito mais do que aquilo que tínhamos recebido, tínhamos tido de facto imensos problemas”.
Aquela escola [...] na altura era muito convencional e vinha com vícios muito de trás, [...] quando alguém tenta inovar há sempre uma interrogação que se coloca, [...] «o que é que estes querem?», «o que é que eles pretendem atingir?»” Na altura ainda não havia a preocupação com a “carreira", mas “as pessoas sentiam-se incomodadas, porque no fundo havia coisas que o Conselho Pedagógico devia assumir e não assumia, [...] essa dinâmica que existia não tinha nada a ver com o Conselho Pedagógico, tinha a ver com um grupo de gente nova, que estava na escola e que queria fazer coisas diferentes, mas em que o Conselho Pedagógico se sentia um bocado em falta, nós conseguimos envolver alguns membros do Conselho Pedagógico, que eram pessoas interessantes, o caso do professor Pedreira de Educação Física e da esposa". Mas o Conselho Directivo tinha um presidente ainda “demasiado director”, e “sentia que as coisas lhe fugiam das mãos ou pensava que nós provavelmente estávamos a envolver demasiados professores” e que isso poderia ser uma eventual candidatura para o próximo Conselho Directivo, “e não era nada disso”; “no fundo nós tentávamos mudar a escola e fazer com que a escola fosse um espaço agradável onde as pessoas gostassem de estar, mas isso desgastou-nos muito, desgastou-nos muito mesmo a nível do próprio grupo, [...] os professores de Matemática não percebiam [...] porque é que um professor de Matemática tem que estar metido nessas coisas”.

O segundo conflito cultural

Em 1984-85 a Filomena saiu do Pragal, com a Ângela, tendo ambas sido colocadas na Escola Secundária Anselmo de Andrade.
Aí, entrou “numa de não me meter absolutamente em nada, [...] ser um professor normal, dar as minhas aulinhas, ir-me embora, num sítio onde ninguém me conhece”. “Só que a Anselmo fica ao lado do Pragal e portanto é muito difícil, eu penso que as coisas passam e as pessoas souberam o que a gente tinha lá feito, porque essas coisas sabem-se”.
Esse era o segundo ano da Escola Cultural. No primeiro ano tinham sido escolhidas 25 escolas para experimentar este projecto e agora abrira concurso a nível nacional para que as escolas se candidatassem. A presidente do Conselho Directivo”, a Lucília, falou-lhe nisso, “porque a escola estava muito murcha, porque havia que fazer coisas e tal, ela sentia-se também um bocado isolada e tinha necessidade de mexer um bocado com a escola”, pelo que a Filomena, que “tinha este bichinho” dos projectos, aceitou envplver-se em mais um. Foi elaborado um projecto experimental para o ano em curso, enquanto se preparava, para o ano seguinte, a candidatura a nível nacional. O projecto experimental envolveu muitos professores, foram criados “17 clubes, e nós de facto mexemos se calhar demasiado com a escola e foi tanto, tanto, tanto”, que a própria presidente levantou problemas, no princípio não muito abertamente, “porque as pessoas continuam sempre com a mesma preocupação, «o que é que esta fulana quer»”, “[«ela] está a mexer demasiado e não convém mexer tanto»”, e “o que é facto é que eu tive problemas outra vez”.
A candidatura nacional à Escola Cultural foi aprovada, tendo sido atribuídos 600 contos à escola, mais 200 contos em livros atribuídos pela Gulbenkian através da candidatura a um outro projecto.
A Lucília tinha pensado no Filomena para vir a coordenar a Escola Cultural no ano seguinte, 1985-86, mas ela já não o queria fazer, pois duvidava da “margem de manobra” que lhe seria dada: “quem manda no dinheiro é que controla tudo, e de facto quem manda no dinheiro é o presidente do Conselho Directivo”, “e de facto havia imensos problemas porque as pessoas queriam dinheiro para que os clubes funcionassem e o dinheiro não era disponibilizado”.
Há maneiras de, no fundo, controlar as coisas”: se o presidente do Conselho Directivo está interessado em fazer um projecto, fala com alguém que sabe ter alguma experiência”, que faz um projecto, a escola candidata-se e se a escola ganhar, para ter algum benefício disso”, vai “controlar tudo isso”, deixando as coisas correr quando isso for em seu benefício, mas, “quando vir que isso está a correr para outro lado, fecha os apoios.
Uma pessoa sente-se um bocado um boneco, não é, sente-se um bocado um boneco, de uma coisa que não tem nada a ver com o que eu estou a fazer”. “Levantaram-se tantos problemas às pessoas, tantos, tantos, tantos, tantos, que as pessoas acabaram no ano seguinte, no final do projecto, por me dizer assim, olha Filomena, nós gostamos imenso de ti, eu gosto imenso do que ando aqui a fazer, gostei de algumas coisas do que fiz, não gosto destas lutas, porque todas as pessoas se sentiram no fundo um bocado em conflito, mesmo quando o conflito não era directamente com elas e era comigo, portanto eu queria que as coisas funcionassem, queria que as pessoas tivessem condições, porque queria que essa dinâmica não se perdesse, indirectamente as pessoas acabavam por ter conflito porque elas próprias tinham elaborado um projecto do seu clube e queriam levá-lo à prática [...]. As pessoas o que acabaram por me dizer é que não estavam dispostas a participar numa coisa que lhes trazia tanto conflito, ou que trazia conflito nem que fosse pequeno”, “e que fariam as mesmas coisas com os seus alunos através das suas aulas”.
Foi o caso do clube de cinema: a sua colega, que era de Filosofia, além de pôr os miúdos a trabalhar com a câmara de video, [punha-os] a fazer entrevistas” e a participar no jornal da escola, promoveu “ciclos de cinema em que o cinema se discutia”; ela pegava, por exemplo, no Charlie Chaplin “e a partir daí ela teve que meter isso nas próprias aulas” e “discutir várias questões relacionadas com a Filosofia, através do cinema”. Essa colega chegou um dia ao pé dela e disse-lhe: «Filomena, “sabes, eu possa fazer estas coisas através da minha disciplina, com os meus alunos, tenho prazer na mesma, sei que mexo com eles, sei que mexo só com os meus alunos, é um facto, mas lamento imenso, [...] o resto das polémicas que se arranjam à volta [...] não é o que me faz estar na escola, e portanto isso cansa-me e eu não estou para andar cansada, esgotada, aborrecida, sempre com receio [do] que as pessoas interpretem»”.

Em 1986-87 o projecto manteve-se mas a Filomena decidiu sair, já “não era o que eu queria”, “o projecto funcionou com muito menos clubes, não sei se foi com meia dúzia de clubes”, “numa dinâmica completamente diferente”, “passou a ser um bocado ocupação de tempos livres, enquanto no projecto inicial era uma coisa que pretendia mexer com a escola, nós tínhamos um café-concerto que se realizava de não sei de quanto em não sei de quanto tempo, em que os miúdos, para realizar esse café-concerto, tinham que ir às actividades dos clubes e mandar alguma coisa cá para fora”, “o que se pretendia no projecto inicial era uma interligação entre o trabalho que se estava a desenvolver nos clubes e as aulas, ou seja, o que se poderia fazer nas aulas, e portanto não era uma coisa só de ocupação de tempos livres, ter ali os miúdos entretidos, não era só isso”, era, “para além disso”, “permitir aos alunos uma formação complementar da formação que o currículo normal prevê, era o poder estabelecer-se trabalhos de interdisciplinaridade entre várias disciplinas, mas também o poder estabelecer-se uma ligação entre o que se estava a fazer fora da aula e o dentro da aula”, o que “exige uma dinâmica de trabalho que confronta muita gente, na sua forma de trabalhar, e o professor parecendo que não [...] é de facto extremamente sensível”, “qualquer professor, penso”, tenta preservar a sua imagem, “e o facto de haver outro tipo de professores, o facto [...] dos alunos aderirem a determinados professores, porque eles dizem-lhes mais, porque estão de facto a desenvolver este tipo de actividades, [...], e se calhar a entendê-los muito melhor e a ligar [...] esses temas [...] com muito mais facilidade, [...] isto mexe muito, [...] mexe de tal maneira que começa a criar uma teia de diz que diz [...] que deita abaixo qualquer projecto, e [...] o projecto deixou de ter o espírito inicial, a partir daí eu [...] desliguei-me da Escola Cultural”.

Antes, durante os dois anos no Pragal, a Filomena tinha estado ligada ao Projecto Minerva, mas, na Anselmo, só o voltou a estar em 1987-88, “para desenvolver um projecto na área do jornal.” Como “a colega que tinha ficado com o jornal era uma colega de Português, [pela] ligação, digamos, entre o que se está a fazer na aula” e a “experiência de execução de um jornal”, “o apoio que eu dava, estando no Minerva, era mais o apoio logístico, dar aos miúdos a formação [de processamento de texto]”; “outro apoio que eu dava era o transmitir um bocado a minha experiência [à colega, para] facilitar um bocado o trabalho e para ela reflectir um bocado o que é que queria fazer”; "estive, eu penso que foi só um ano, no Minerva com isso.

Uma reflexão transformadora

Eu quando [...] fui dar aulas, no fundo fui um bocado [...] a imitação [do] que os meus professores me faziam quando eu era aluna no Liceu Filipa de Lencastre”. “Só que [...] eu gostava de Matemática, Matemática era uma coisa que me divertia e sempre me divertiu muito, divertia-me a fazer exercícios de Matemática, divertia-me a resolver problemas de geometria, eu lembro-me [...] que tinha muita facilidade para aquilo e divertia-me de facto com aquilo, gostava de pensar e achava que o raciocínio era uma coisa belíssima, lindíssima, e sentia-me extremamente frustrada de não conseguir fazer com que os alunos gostassem, não digo tanto de Matemática como eu, mas pelo menos não estivessem nessa situação de a Matemática é um horror.” E “no fundo o meu trabalho era isto, era tentar arranjar processos diferentes de os pôr a executar as coisas com mais facilidade, ou seja, eles tinham que resolver determinados exercícios, então eu andava à procura de técnicas [...] para os fazer executar os exercícios, [mas] a perspectiva era unicamente [...] de lhes facilitar a vida e de lhes dar receitas, [...] ao fim e ao cabo era dar-lhes receitas, e quando depois começo a ter a consciência de que de facto o que eles queriam era a receita, e o que eu estava a fazer era no fundo um caminho para que eles chegassem à receita, não é, e depois eles sabiam a receita e faziam os exercícios mas não eram capazes de resolver um problema, de mexer com as coisas, de ligar, de lerem um enunciado, [...] isto é uma segunda fase que eu tenho, [...] que me deixa muito insatisfeita, porquê, porque no fundo [...] eles não gostam de Matemática [mas] têm de saber Matemática [...] e agarram-se à receita e de facto eles não apreciam a Matemática como eu a aprecio, e então começei a fazer um balanço, o que é que eu gostava na Matemática, o que é que mexia comigo”. No modo “como resolvia os problemas [...] havia uma certa emoção”, “eu lia um problema, [...] sentia o desafio [...] e não saía dali enquanto não resolvesse, [...] emocionalmente eu estava envolvida naquele problema”; “e se eu fosse fazer um balanço dos alunos todos que eu tinha tido, [...] se eu conseguisse arranjar [...] vinte alunos [...] que vissem a Matemática de uma forma diferente e que se conseguissem emocionar com a própria Matemática, seria muito, e portanto [...] eu sentia que o aluno tem que ser desenvolvido em todas as suas áreas e sentia que a adesão a qualquer coisa, e hoje isso para mim é bastante claro, eu adiro a uma coisa que mexa com as minhas emoções, e de facto a Matemática é uma área que nós temos que saber mexer com as emoções dos alunos e eu não estava a conseguir isso através de todas as estratégias que eu arranjava para que eles ficasse a saber as receitas.

Comentários

A propósito das entrevistas que realizei ao José Tomás [testemunho «050»] e à Raquel [testemunho «060»] lembrei-me de quatro das dez conclusões da minha tese de mestrado, que também seria adequado lembrar a propósito desta entrevista com a Filomena.
No fundo, a tese também se baseava nestes meus colegas, pelo que foi natural que pelo menos uma parte das suas conclusões tivessem sido lembradas a propósito destas entrevistas.

Eis os títulos dessas quatro conclusões:

Os professores envolveram-se enquanto pessoas na profissão.

O envolvimento profissional dos professores apoiou o seu desenvolvimento pessoal.

Os espaços incorporaram a acção profissional dos professores.

As ferramentas inscreveram a acção profissional dos professores.

A releitura e resumo da entrevista à Filomena (agora feita, quase trinta anos depois!) lembrou-me, especialmente, duas outras das conclusões da minha tese. Transcrevo-as a seguir, na íntegra:

O aluno foi encarado sobretudo como pessoa envolvida num processo educativo.

Os professores preocuparam-se acima de tudo com a participação dos seus alunos enquanto pessoas, o que implicou referências à aceitação das suas culturas de pertença. Assim, e pelo menos na escolaridade obrigatória, a aprendizagem da Matemática surgiu para os docentes como parte de um processo educacional mais geral, do qual pode estar metodologicamente dependente. Como consequência, as teorias da aprendizagem foram encaradas pelos professores como menos relevantes do que as teorias da educação e a construção educacional foi feita sobretudo a partir do concreto e menos como dedução derivada de uma teoria. Esta centração no aluno surgiu como condição para a realização de mudanças tanto curriculares como não-curriculares.

A dinâmica cultural só se consolidou através da afirmação dos seus valores.

Nalguns casos, os professores expressaram a sua dinâmica cultural sobretudo através da acção e da interacção profissional. Quando assim foi, e de acordo com as anteriores proposições, os valores encontraram dificuldades quer no campo dos deveres (a responsabilização foi condicionada pelos limites externos à intervenção e a organização profissional pelo questionamento da predominância da horizontalidade das interacções), quer no campo dos direitos (a iniciativa não esteve sempre garantida na escola e só muito limitadamente foi apoiada pela afirmação do colectivo). Noutros casos, a dinâmica cultural dos professores baseou-se, também, na explicitação dos valores. Quando se afirmou a necessidade de partilha e a importância da iniciativa, tornou-se mais fácil aos professores anteciparem mudanças, sobretudo no momento em que o contexto lhes era favorável (caso de as suas ideias convergirem com as reformistas no plano educacional); nestas circunstâncias, a articulação entre a organização profissional e a assumpção da palavra foi suficiente para dar início à elaboração de estratégias de desenvolvimento profissional, individuais e colectivas, com efeitos nos espaços, nas ferramentas, nos saberes, nas identificações e nas oposições.


Fontes: Pedro Esteves / Arquivador digital Tese de mestrado (4EXPR 13) / Livro (Esteves, 1998; ponto VII.1.2.9) / Álbum de fotografias analógicas ESJA 4 (F102: 22 [fotografia recortada])

[067] O Núcleo da APM em 1992-93

Memórias

Este foi o terceiro e último dos anos lectivos do projecto AlterMATivas [testemunho «063»]. Quer para o planeamento, quer para a sua avaliação e divulgação foram necessárias, apenas durante este ano, 58 horas de reunião, qualquer coisa parecida com 6 horas por mês.
Os professores envolvidos no AlterMATivas ainda tiveram um gesto de solidariedade para com os seus colegas com turmas do 5º e do 7º (a generalização da reforma curricular tinha aí chegado, e também ao 2º ano de escolaridade). Já com dois anos de experiência na implementação de mudanças curriculares, eles criaram um Grupo de Trabalho para o 5º e o 7º anos (houve algumas divergências internas sobre como o organizar) onde apresentaram ideias sobre a didáctica e sobre o uso das calculadoras (a sua utilização tinha começado a ser recomendada) e onde promoveram o debate sobre as experimentações que iam sendo feitas nas escolas dos participantes. Foram concretizadas 9 dessas sessões, com um total de 30 horas, tendo participado em pelo menos uma delas 76 professores de 25 escolas do 2º e do 3º Ciclos (25 estavam especialmente interessados no 5º ano, 44 no 7º e os restantes não estavam, nesse ano lectivo, ligados a estes níveis de ensino). O número médio de sessões em que estes professores participaram situou-se entre as 2 e as 3, não tendo ficado claro se eles se mobilizaram em função da sua adaptação à reforma curricular, se em função de aproveitarem a oportunidade proporcionada por ela para se desenvolverem pessoal e profissionalmente.
Na reunião de 8 de Outubro, na Escola Preparatória do Feijó, foi referido, durante a troca de impressões, que havia restrições orçamentais de todo o tipo nas escolas (por exemplo, faltava dinheiro para fotocópias) e que a participação dos alunos nas aulas tinha trazido novos desafios (como orientar a exuberância da sua participação? como trabalhar com os vários modelos de calculadoras trazidas pelos alunos?).
Sim, a palavra “exuberância” deve ter sido dita nessa reunião, ou fui eu que a usei para resumir o que ouvia, pois a escrevi nos meus apontamentos – os novos métodos de ensino-aprendizagem traziam, pelo menos onde eles eram bem usados, a “exuberância” da participação dos alunos!

À semelhança do feito por este Grupo de Trabalho, também alguns professores da Escola Secundária Anselmo de Andrade promoveram uma acção de formação sobre Estatística, em que participaram 20 professores de 15 Escolas Secundárias de Almada e Seixal.
Não faltaram gestos de solidariedade entre professores!

Paralelamente ao AlterMATivas, o projecto MATlab [testemunho «065»] alargou-se a 8 Escolas de Almada-Seixal (em cada uma tinha sido criado um espaço extracurricular associado à Matemática), estando nelas envolvidos, com alguma regularidade, 12 professores (alguns deles, os da Preparatória de Corroios e da Secundária Nº 1 de Corroios, tinham formalizado uma colaboração, designando-a por LudoMAT).
As reuniões (foram realizadas duas em cada período lectivo) serviram sobretudo para experimentar as situações laboratoriais que mais tarde seriam propostas aos alunos. Mas no final do ano lectivo serviram também para organizar o 1º Interescolas de Jogos de Reflexão, no qual, além dos 70 alunos [testemunho «065»], participaram mais de uma dúzia de professores (ou seja, mais do que os membros docentes do MATlab).
Foram também alguns destes professores que organizaram a visita a Almada e ao Seixal da exposição «A Aventura no País da Matemática», que esteve, de 11 a 16 de Janeiro, na Escola Secundária do Fogueteiro (actual Manuel Cargaleiro) e, de 18 a 28 de Janeiro, na Casa Municipal da Juventude de Almada (situada em Cacilhas), tendo recebido cerca de 1800 visitantes.

E foram também estes professores que, depois, organizaram um encontro sobre Jogos, também na Casa Municipal da Juventude de Almada, em que participaram 15 professores de 11 escolas:

Capa do folheto sobre a exposição, concebida e elaborada por um grupo de professores das
Escolas Secundárias de Queluz, Massamá e Cacém

Em Abril, houve ainda coragem, por parte de um grupo de 22 professores de 13 escolas de Almada e Seixal, para redigirem e candidatarem o projecto InterMAT aos concursos de projectos lançado anualmente pelo Instituto de Inovação Educacional (o «Educar Inovando / Inovar Educando»). Considerando, como problema de partida, existir um “contexto local marcado por iniciativas inovadoras, no âmbito da Educação Matemática”, com “um grau de organização” entre as escolas envolvidas “já apreciável”, que começara, no entanto, a sofrer a “pressão” dispersante da formação contínua, estes professores perguntaram-se: “como conciliar a necessidade de garantir meios e esforços de autonomia e criatividade a cada um dos professores, com as vantagens do aprofundamento das ligações, das realizações comuns e das estruturas de coordenação?
E, para isso, propunham-se, criar “uma rede de apoios aos projectos e outras intervenções nas escolas, quer ao nível “lectivo dos anos da Reforma Curricular”, quer ao nível das “actividades extracurriculares”, procurando “alargar o número de escolas e professores envolvidos”, nomeadamente através:
(1) da criação de espaços em que se possa: debater os resultados das diversas “experiências”; reflectir sobre o “trabalho realizado”; preparar e “coordenar intervenções individuais e comuns”; e enriquecer a “formação através de contribuições internas e externas”;
(2) do apoio, “em ideias e materiais, às iniciativas de professores em escolas que não tenham meios para tal”;
(3) das Realizações comuns, destinadas a alunos ou a professores, com o papel prático e simbólico de unificação de iniciativas individuais e de alargamento a outros intervenientes”;
(4) da Valorização, através de divulgação e publicação dos resultados de cada um dos projectos e intervenções“;
(5) da Distribuição larga de responsabilidades das anteriores iniciativas entre os autores do projecto.
No resumo do projecto, os autores queixam-se dos “centros de formação locais”, por não terem perspectivado “nenhum apoio imediato à formação baseada em projecto” e por não terem incluído nos seus Planos de Formação nada “que diga respeito ao ensino da Matemática, mesmo que em termos de cursos.
Era um projecto muito ambicioso, mas tinha um horizonte curto: um só ano (1993-94).
Eis as escolas que se envolveram (designadas tal como naquela época) e os respectivos professores:
Escola C+S da Costa da Caparica (Helena Mesquita)
Escola Preparatória de Corroios (Fernanda Coelho; Gastão Cristelo)
Escola Preparatória da Cova da Piedade (Teresa Nascimento)
Escola Secundária Anselmo de Andrade (Ângela Queiroz; Cristina Fonseca; Filomena Teles; Isabel Barrau; Lurdes Alves)
Escola Secundária António Gedeão (José Camejo)
Escola Secundária de Corroios Nº 1 (Mirita Sousa)
Escola Secundária Emídio Navarro (Ana Mota; Rita Vieira)
Escola Secundária Fernão Mendes Pinto (Isabel Amaro; Isabel Fernandes; Paula Marques; Rosário Almeida)
Escola Secundária do Laranjeiro Nº 1 (José Tomás Gomes)
Escola Secundária do Laranjeiro Nº 2 (Patrícia Cascais)
Escola Secundária do Monte da Caparica (Dora Almeida)
Escola Secundária do Seixal Nº 1 (Pedro Esteves)
Faculdade de Ciências e Tecnologia, Pólo Minerva (Margarida Junqueira)

O 3º Encontro Regional de Professores de Matemática foi realizado durante 3 dias, em Julho, na Escola Secundária Nº 2 do Laranjeiro (actual (Francisco Simões), tendo a participação de 63 professores.
Foram 12 os responsáveis pelas intervenções (4 do Ensino Superior), todos de Matemática.
O Encontro começou
 com um debate sobre o primeiro ano da reforma curricular no 2º Ciclo, no 3º Ciclo e no Secundário. E, numa das sessões práticas, dinamizada pelos autores do MATlab, intitulada “O jogo: que motivações?”, perguntou-se aos participantes como encaravam a vocação dos novos espaços associados a este projecto: se seriam para “O jogo pelo jogo”, se para “Clube de jogos” ou “Forum de actividades”, se para “Grupos de investigação”, ou se não seriam necessários, pois os jogos só deveriam ser usados “na aula”.

Para apoiar toda esta actividade, a Comissão Coordenadora do Núcleo editou quatro números do Boletim Informativo.

Comentários

O que mais me impressiona hoje ao relembrar a actividade desenvolvida em torno do Núcleo da APM são as ligações entre as escolas. Estavam longe de abranger «todos os professores de Matemática» dos concelhos de Almada e do Seixal», mas abrangiam muitos. Trocavam-se ideias, materiais e comentários; faziam-se coisas em comum (e o AlterMATivas, o MATlab e o InterMAT, mais os Encontros Anuais, foram disso os exemplos maiores).
A pergunta sobre o que aconteceu depois (ou seja, porque desapareceu este espírito de solidarieade?) tem de ser feita desde já. Que razões externas se irão detectar? E que razões internas?

Posso começar por lançar um primeiro olhar às razões internas, através de uma reapreciação do InterMAT.
A sua ambição tinha total fundamento: o projecto traduzia a experiência comum de um pequeno grupo de professores que leccionava na mesma região, e que estava a sentir que a recente obrigatoriedade da «formação contínua» podia dissolver em individualismos a intervenção colectiva que já tinha sido conseguida. A criação de Centros de Formação iria questionar a «formação» que acontecia directamente durante a concretização dos diversos projectos, de escola ou interescolas? Não iria a obrigatoriedade da «formação» separar esta da «acção» e da «investigação»?
Esta dúvida era legítima, e quando escrevi as minhas impressões sobre o ProfMAT de Viseu (testemunho «062») devo tê-lo sentido (a APM já tinha organizado a «investigação», organizava agora a «formação», mas não pensara em organizar a «acção» dos projectos; enquanto instituição, a APM não sentiu o surgimento deste problema).

Eu fui um dos autores do InterMAT, pelo que qualquer observação crítica que faça agora a este projecto é-me também dirigida.
Penso que um projecto destes deveria ter sido equacionada a médio prazo, e não para um só ano lectivo. Penso também que ele deveria ter sido mais contido tanto no que respeita aos professores e escolas a envolver (exagerou claramente nas expectativas) como à metodologia de trabalho (deslizou, em vários pontos, para previsões típicas da Engenharia). Faltou-lhe, certamente, uma compreensão mais profunda do que era necessário consolidar (a cooperação entre alguns) e do que era preciso precaver (o início do retrocesso da maioria) e porquê (as manobras em larga escala vindas do topo do sistema educativo).


Fontes
: Pedro Esteves / Arquivador analógico Núcleo Um (Doc.s 19 e 21) / Arquivador analógico ESJA Quatro (Doc. 1) / Arquivador analógico ESJA Cinco (Doc. 80 e 110) / Caixa com materiais do Núcleo Regional da APM (Actas do 3º Encontro)