«103» O SIAP e as ambiguidades iniciais do associativismo docente

Memórias


Tanto pelo que senti na altura, como pelo que reflecti recentemente, a transição entre a primeira e a segunda metade da década de 90 constituiu uma charneira na história do nosso sistema educativo.

Lembro a seguir três episódios ocorridos no âmbito do associativismo docente que ilustram as discretas mas profundas mudanças que estavam a ocorrer.

O Secretariado Inter-Associações de Professores (SIAP), criado em 20 de Julho de 1992, organizou, perto do final de 1994-95, o seu segundo encontro anual. O tema escolhido foi a Reforma Educativa cuja generalização estava a ser concluída.



Este tema não nos deve admirar: nas três reuniões prévias à criação do SIAP, todas realizadas em 1992, fora essa a preocupação central dos representantes das associações que nelas participaram, talvez mesmo a sua única preocupação. E isso reflectiu-se no modo como o SIAP, depois de fundado, se apresentou publicamente: seria o resultado do “diálogo entre as associações a propósito da sua representação no Conselho Nacional de Educação”, o que o levou a constituir-se como uma “plataforma de entendimento das várias Associações de Professores e parceiro social junto do Ministério da Educação e seus departamentos e institutos” de modo a actuar “no estrito âmbito das questões pedagógicas comuns aos vários saberes e áreas disciplinares e, também, de todos os assuntos relacionados com a organização curricular geral, não se imiscuindo no campo laboral e estritamente científico que reconhecem competir respectivamente aos sindicatos e associações / sociedades científicas”.
Sendo constituído por representantes das diversas associações, o SIAP optou por tomar decisões baseadas no “consenso” ou, na ausência deste, numa “maioria absoluta”, tendo por objectivos:
- “Instituir um forum de discussão pedagógica entre professores”;
- “Contribuir para uma maior intervenção dos professores e das suas Associações Pedagógicas na definição da política educativa nacional”;
- “Assumir a condição de parceiro social junto do Ministério da Educação em assuntos que, pela natureza pedagógica, não se incluem na esfera sindical”;
- “Intervir activamente na definição, implementação, avaliação e reformulação da Reforma Educativa”;
- “Participar na definição dos planos de formação contínua de professores”;
- “Organizar, conjuntamente, acções de formação contínua de professores no âmbito interdisciplinar”.


Tendo sido iniciado por apenas nove associações de professores, em pouco mais de três anos duplicou o número de associações que estiveram regularmente envolvidas no SIAP (a seguir assinaladas com um *) ou que com ele tiveram contactos esporádicos:
Associação Nacional de Professores de Educação Visual e Tecnológica (APEVT *);
Associação Portuguesa de Geógrafos (APG);
Associação Portuguesa de Orientadores Escolares e Profissionais (APOEP);
Associação Portuguesa de Professores de Alemão (APPA *);
Associação Portuguesa de Professores de Biologia e Geologia (APPBG);
Associação Portuguesa de Professores de Francês (APPF *);
Associação Portuguesa de Professores de Inglês (APPI *);
Associação de Professores de Ciências Económico-Sociais (APROCES *);
Associação de Professores de Expressão e Comunicação Visual (APECV *);
Associação de Professores de Filosofia (APF);
Associação de Professores de Geografia (APG *);
Associação de Professores de História (APH *);
Associação de Professores de Matemática (APM *);
Associação de Professores de Português (APP *);
Associação dos Profissionais de Educação de Infância (APEI);
Conselho Nacional das Associações de Professores de Educação Física (CNAPEF);
Sociedade Portuguesa de Educação Física (SPEF).

Não esclareci (através das respectivas webpages) as datas de criação de todas estas associações, mas fi-lo em relação às que coordenaram o SIAP nos seus três primeiros anos de existência: a de Português em 1977; a de História em 1981; a de Inglês em 1985; a de Matemática em 1986; e a de Ciências Económico-Sociais em 1988.
É portanto evidente que este surto associativo ocorreu como consequência do «25 de Abril de 1974», o que também aconteceu com a criação de outras associações ligadas ao fenómeno educativo: por exemplo, a Confederação Nacional das Associações de Pais (CONFAP) foi fundada em 1985 e a Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação (SPCE) em 1990.

Dos que intervieram no encontro anual organizado pelo SIAP no final de 1994-95 apenas conheço o Fernando Nunes, então professor do 2º Ciclo. Na sua intervenção ele apresentou os resultados de um inquérito que a APM dirigira, cerca de um ano antes, a professores de Matemática do ensino não superior de todo o país. Para tal, ele organizou as respostas recebidas (talvez o inquérito já estivesse estruturado desse modo) de modo a destacar, em relação à Reforma Curricular que estava a ser generalizada, o «sentimento» que os inquiridos sobre ela tinham, mais os «aspectos positivos» e os «aspectos negativos» que nela apontavam, realçando, nomeadamente, a «extensão dos programas» e a «avaliação dos alunos».
No final da apresentação desses resultados o Fernando concluiu que os professores estavam interessados na Reforma Curricular e que tanto a consideravam como «positiva» como, dadas as condições de implementação de que dispunham, a sentiam com algum «desconforto». E, tal como acontece sempre que são realizados este tipo de «inquéritos», o Fernando ainda acrescentou um comentário diagonal às tendências que as respostas revelavam: existia entre os inquiridos uma óbvia «diversidade de opiniões».

Quase um ano depois, portanto em 1995-96, soube que o Ministério da Educação tinha desafiado alguns sócios da Associação de Professores de Matemática a elaborar um documento de conteúdo, para mim, bastante inesperado. Escrevi à direcção da associação, ao boletim que publicara a informação e a um dos que fora convidados pelo Ministério da Educação (o Paulo Abrantes, talvez por ter sido ele a assinar a informação no boletim).
Comecei assim:
Fiquei negativamente surpreendido com os termos em que no «A.P.M. informação» de Março (nº 27) foi apresentada a criação de um «grupo de trabalho» para a elaboração de «um documento» que
«1º faça um diagnóstico da situação no que se refere
[ao ensino da] Matemática;
2º defina orientações e práticas do ensino da Matemática nas nossas escolas;
3º caracterize e defina as necessidades de formação dos professores de Matemática;
4º defina as condições de apoio ao ensino e aprendizagem da Matemática.
[p. 3]
Gostaria em primeiro lugar de sublinhar que, como professor, não aceito o carácter normativo subjacente à ideia de definição de «orientações e práticas do ensino da Matemática». Uma tal pretensão, nem através da mais cuidada consulta seguida do mais amplo referendo pode ser alcançada - pura e simplesmente não tem sentido. Será, pelo contrário, muito bem vinda para mim uma reflexão fundamentada nos saberes profissionais docentes e nas investigações sobre educação; por sua natureza, esta assumirá ou o carácter de uma recomendação (feita por um grupo que trabalhou segundo uma determinada metodologia) ou, ainda melhor, o carácter de uma proposta (o que é típico dos processos sociais abertos).

E
um pouco adiante acrescentei esta interrogação (que aponta para uma alternativa):
“(…) mesmo no caso de o resultado do esforço a dispender pelo «grupo de trabalho» assumir a forma de «recomendações» ou de «propostas», e apesar do papel inequivocamente importante que tal terá, será bom não nos iludirmos acerca dos limites dos efeitos deste tipo de intervenção, quer no âmbito quer no prazo; mudar a forma como mudamos não se faz apenas pela «palavra», faz-se também com «actos», e com confronto entre «palavras» e «actos»; não será por conseguinte necessário preocuparmo-nos também com o reforço das iniciativas inovadoras e com as ligações entre elas? não precisaremos de intervir e de reflectir em tanta outra coisa, imediata e mediata, enquanto decorre o tempo, necessariamente muito longo, que o proposto estudo do «grupo de trabalho» vai exigir?
Não obtive qualquer resposta para esta minha carta.

O terceiro episódio ocorreu no início de 1996-97, durante o ProfMAT realizado, em Almada, na Escola Básica António da Costa e na Escola Secundária Emídio Navarro.
O meu estado de espírito não era nada favorável a este ProfMAT, pois tinha considerado que a escolha deste local havia sido imposta ao Núcleo de Almada-Seixal pela Direcção da APM, e que o Núcleo não reagira, como deveria ter reagido [ver testemunho «099»]. E ainda hoje me incomoda pensar no que então aconteceu, e no que isso significou. Se o episódio que agora recordo é outro, ele é mais uma peça para compreender como o meu incómodo foi aumentando.
Como em 1996 a APM completava 10 anos de vida (e de ProfMATs), dois dos seus sócios decidiram escrever um livrinho intitulado «Dez anos de Encontro»:



O livrinho teve direito a grande destaque no ProfMAT, sendo sobretudo constituído por uma narrativa ao estilo «epopeia associativa», destinada a consolidar, entre os sócios da APM, um espírito favorável às orientações dos «pais fundadores», que não eram «professores como o eram a maioria»: os autores do livrinho, o Eduardo Veloso e o Henrique Guimarães, pertenciam a esse grupo de «guias associativos», e o primeiro não leccionava, sendo apenas um divulgador da Matemática, e o segundo era, no Ensino Superior, professor na área da Educação Matemática. Isso queria dizer que, a haver uma «epopeia», ela não tinha sido intelectualmente construída por sócios que, como eu, leccionavam em escolas Básicas e Secundárias.


Comentários

Penso que a APM, tal como (muito provavelmente) todas as outras associações de professores envolvidas no SIAP, não se terão apercebido de três ambiguidades que se foram instalando no associativismo docente:

(1) Sobre o papel do associativismo: o foco da acção das associações de professores deve estar no «desenvolvimento profissional» dos docentes e não na «intervenção», enquanto «parceiros sociais» do Ministério da Educação, nas Reformas da Educação; o 2º Encontro do SIAP mostrou como os professores que aí intervieram pareceram sobretudo preocupados com as propostas a fazer sobre a Reforma Educativa e não com o papel que os professores poderiam desempenhar com ou sem ela; o inquérito cujos resultados o Fernando Nunes analisou estava estruturado nessa direcção, não equacionando (apesar de ter alguns dados para o fazer) o problema decisivo de qualquer «reforma», que é a diversidade de práticas e de opiniões dos professores.

(2) Sobre a organização do associativismo: as diversas associações que começaram a dialogar através do SIAP incluíram entre os seus objectivos comuns a constituição de um «forum de discussão pedagógica», mas é óbvio que não seria através de um «encontro anual» que o conseguiriam, a não ser que o «diálogo» fosse restringido ao reduzidíssimo número de professores que representavam no SIAP as diversas associações; havia outras soluções organizativas, como, por exemplo, a da SPCE, que juntou no seu seio todos os investigadores em Ciências da Educação, independentemente da sua área científica de trabalho e das disciplinas curriculares a que estivessem particularmente ligados.

(3) Sobre a autonomia do associativismo: não cabe aos professores do ensino superior orientar o desenvolvimento profissional dos professores do ensino não superior, embora possam apresentar-lhes estudos inspiradores; o livrinho tão incensado no ProfMAT de Almada evidenciou que os professores do ensino não superior não tinham sido capazes de se afirmar autonomamente na APM, deixando que a «voz do colectivo» lhes fosse alheia; e se essa voz ainda não reflectia com clareza a aliança, em gestação, entre o Ministério da Educação e alguns investigadores em Educação Matemática (representados por aqueles que, no ano anterior, aceitaram a encomenda da elaboração de um «diagnóstico», de «orientações» e de «condições» para futuras reformulações curriculares), estava a caminho de o fazer; tratava-se de uma aliança que não dizia respeito aos professores do ensino não superior - terá esta usurpação também ocorrido nas outras associações?

Vejo duas origens explicativas para a força com que estas ambiguidades se impuseram no associativismo docente:

(a) Em 1974 a grande maioria dos professores do ensino não superior não dispunha de experiência associativa, nem de perspectivas sólidas sobre o que poderia ser a sua profissão nem sobre o que seria uma mudança no sistema educativo; e, nos anos seguintes, a entrada de muitos novos professores nas escolas veio agravar esta lacuna; quem a dada altura começou a chamar a atenção para alguns dos aspectos essenciais que estavam em jogo foram, pelo acesso que tinham a fontes estrangeiras e pelo papel de recolectores e de divulgadores que se esperava que tivessem, alguns dos investigadores em Ciências da Educação, nomeadamente António Nóvoa, José Alberto Correia, Rui Canário e Stephen Stoer; eles abordaram o associativismo docente, a identidade profissional, o papel das escolas, os desafios da mudança e os caminhos de formação contínua (são estes os temas com que tomei contacto); e também lembraram o recurso à «investigação» pelos docentes, mas esse terá sido o primeiro tema a ser esquecido, como consequência do monopólio que os investigadores do ensino superior dele fizeram; quanto às «mudanças na prática» que muitos professores do ensino não superior estavam a implementar, a sua sorte foi serem ignoradas e substituídas pela «ideologia das reformas» (ou seja, a das «mudanças a partir de cima»).

(b) Uma outra origem explicativa para as ambiguidades do associativismo docente poder-se-á ter infiltrado nas decisões de uma boa parte dos professores (de qualquer grau de ensino) que se destacaram após 1974: tratou-se da tentação de «gerir o sistema», o que, no campo da educação, se manifestou no associativismo, nas escolas, nos currículos e na formação, mas também nos papeis atribuído às tutelas nacionais e locais e às instituições do ensino superior; isso gerou novas hierarquias e novos controlos, bem como novas ilusões e novos problemas.

Estes anos foram para mim a «charneira na história do nosso sistema educativo» porque o espírito que se instalou depois deles foi completamente diferente do que existia desde o «2 de Abril de 1974».



Fontes:
Associação de Professores de História (1990-93): Boletim da Associação de Professores de História, números 12 a 15 IIª série
Associação de Professores de Matemática (1996): Dez anos de Encontro
Secretariado Inter-Associações de Professores (1995): SIAP 95 - Actas
Pedro Esteves: ficheiro digital ANTINORM (em: Associação de Professores de Matemática / Anos lectivos / 1995-96)

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