Memórias
As eleições legislativas de 1995 foram ganhas pelo candidato da oposição, António
Guterres, o que levou, no dia 28 de Outubro, a uma mudança de ministros da
educação: saíu Manuela
Ferreira Leite e entrou Eduardo Marçal Grilo (este manteve-se no cargo
até 25 Outubro de 1999, quase quatro anos).
Houve um única outra novidade relevante no sistema educativo durante este ano
lectivo, a generalização
da Reforma Curricular ao 12º ano de escolaridade. Mas, para mim,
este ano foi muito diferente do habitual, por razões que nada tiveram a ver com
estas mudanças vindas do topo do sistema educativo: com a parte curricular do
mestrado concluída, o respectivo projecto de investigação aprovado e um Ano
Sabático para o implementar, não tinha turmas para leccionar, embora,
cumulativamente ao desafio que assumira, quisesse continuar a dar um apoio na
minha (Ludoteca e elaboração do Projecto Educativo) e no Núcleo da APM
(Interescolas de Jogos de Reflexão e Encontro Anual de Professores).
Pretendia, com a investigação, compreender a dinâmica cultural gerada pelos professores
de Matemática que se tinham envolvido no Núcleo da APM, desde que este fora
fundado, em 1989-90. Para isso, precisava de apreciar documentos que haviam
registado esta curta história e, para os interpretar, precisava de entrevistar
alguns dos colegas que nela tinham estado mais empenhados.
Para as entrevistas escolhi a Filomena Teles, o José Tomás e a Rita Vieira
(mais tarde o meu orientador, o José Manuel Matos, quis que eu acrescentasse
uma auto-entrevista). Concretizei as três entrevistas em 26 de Setembro e em 16
e 23 de Novembro, usando, como era inevitável naquela altura, um gravador
analógico e as respectivas cassetes para as registar magneticamente numa fita:
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O gravador analógico e as cassetes com as entrevistas gravadas |
A parte mais dura foi a
transcrição do som (analógico) para a escrita (digital). Ainda hoje é uma
actividade demorada, apesar de tudo ser digital, mas naquela altura era-o ainda
mais, pois os dispositivos de controlo do som (pára, arranca; pára, arranca) eram difíceis de manejar. No entanto tinha uma pequena
compensação estética: como este trabalho foi feito na Alemanha (onde estava a
minha família mais próxima), fi-lo sentado em frente a uma janela onde,
frequentemente, podia ver a neve a cair lá fora.
Uma das vantagens de ser o entrevistador a fazer a transcrição (há quem a encomende)
é passar mais tempo com os entrevistados. Não é só ouvi-los de novo, é também
escrever o que ouve, tendo portanto mais tempo para ir pensando no que ouviu e
assim reforçando a empatia com quem falou. Este maior envolvimento levava a
que, ao fim de algumas manhãs, quando saía de casa para ir almoçar, ainda
estava a «falar» ou com a Filomena, ou com o Zé, ou com a Rita, até me dar
conta de que, à «nossa volta», estava a nevar.
Já usei parte destas três entrevistas quando fiz o balanço do projecto
AlterMATivas [testemunhos «069» a «073»]. E nelas também abordei os outros dois
projectos interescolas que o Núcleo da APM lançara, o MATlab e o InterMAT; além,
claro, da vida associativa que os tornou todos estes projectos possíveis.
Vou voltar a essas entrevistas, seleccionando desta vez o que nelas há de
«balanço» do que fizéramos e, por vezes, de «sonho» em relação ao futuro.
Estávamos, por volta desse ano lectivo, num momento de «transição», que nada
tinha a ver com a mudança de ministros, e que estava muito para além daquilo
que nos era de imediato perceptível. Na altura não o percebi, mas hoje essa
«transição» já se me tornou muito mais clara.
Para a Rita
Vieira, saber que existiam materiais didáticos, como o geoplano, que
se podiam usar na aprendizagem da Matemática, não tinha sido suficiente para
que ela se decidisse levá-los para as suas aulas. Foi sobretudo com o projecto AlterMATivas
que ela deu “o grande salto”: se “já sabia” que era importante os alunos usarem
“alguns materiais”, “trabalharem em grupo”, “tirarem conclusões”, “fazer conjecturas”,
também sabendo que havia quem o fizesse, sem que “nunca” o tivesse “visto”, foi
com os colegas do Núcleo com quem viria a trabalhar no AlterMATivas que ela sentiu
ter um “apoio de rectaguarda”, um grupo onde poderia “discutir aquilo”.
Já antes do AlterMATivas, na altura em que foi fundado o Núcleo da APM, com colegas
que ela não conhecia (à excepção da Ângela e da Filomena), se tinha gerado um
ambiente do tipo «E se a gente fizesse, e se a gente fizesse?», ela sentira
ter-lhe aparecido um grupo onde teria a coragem para dar “o grande salto”.
As vantagens de trabalhar em grupo também existiram no projecto MATlab, embora
aí as oportunidades fossem menos intensas, pois os produtos finais não as
exigiam tanto, dado se tratar de um projecto extracurricular. Foram portanto estes
projectos, e o Núcleo, que “vieram resolver um problema, que foi o trabalho em
grupo”. E isso foi importante para ela porque não tinha tido situações dessas na
escola, a não ser muito pontualmente.
No entanto a Rita ficou com uma dúvida fundamental acerca do relacionamento que
tinha com os alunos, conforme trabalhava com eles nas aulas, ou fora das aulas:
“Eu gostava de perceber o que é que se passa dentro de uma aula que faz com que
duas pessoas, as mesmas, mudem de espaço e tenham uma atitude completamente
diferente, não só em relação um ao outro mas em relação ao próprio trabalho”,
desabafou. No ano anterior ela tinha estado “com não sei quantos miúdos a
construir sólidos” geométricos para uma exposição que os professores
estagiários de Física e Química da sua escola fizeram em Almada; “eles
estiveram ali [sempre com grande “alegria”] a fazer aquilo, a contar os
quadrados que eram precisos, a contar quantas faces, e depois como é que é os
vértices, e depois como é que [tudo se une].” Então, “o que é que se passa? o
que é que muda?” entre a aula e o fora da aula?
Mas, continuou ela, naquela altura os projectos associados ao Núcleo também
estavam a ter problemas, pois nem estavam activos, nem os seus materiais estavam
a ser utilizados. E deu uma pista para isso: “Se não tivesse havido Reforma
[Curricular] a gente tinha continuado a trabalhar”; os novos manuais escolares
até tinham sido elaborados por colegas com quem nós concordávamos “mais ou
menos”, pelo que teremos sentido que não precisávamos de fazer os nossos
materiais, e o AlterMATivas “esvaziou-se aí”.
Quanto ao MATlab, que não desapareceu logo, se se verificou um aumento do número
de participantes, a sua intensidade de trabalho passou a ser mais reduzida,
apesar de haver imensas ideias por explorar.
O que se estava a passar com os projectos, comentou a Rita, também tinha a ver
com o Núcleo. Ela chamou a atenção para haver professores que tinham deixado de
aparecer, talvez para tratarem das “suas coisinhas” nas respectivas escolas, ou
para evitarem assumir responsabilidades na coordenação do Núcleo (nós
defendíamos que esta devia ser rotativa). E também reparou que havia
professores que intervinham nos encontros anuais organizados pela APM mas não
nos do Núcleo. E isso trazia o “perigo” de os encontros regionais serem
transformados “em ir lá alguém [de fora] a debitar” e nós [os de dentro] apenas
a “receber”.
“O que me apetecia propor” concluiu a Rita, era “fazer um levantamento
exaustivo do que as pessoas estão a fazer, mas as pessoas podem não estar para
isso, não é”, podem não querer que aquilo que fazem seja “como um trabalho
integrado no Núcleo”; e, nesse caso, “o Núcleo não serve para nada e então
acaba-se com ele”, pois além do encontro regional de professores “começa a não
servir para nada”.
Depois de defender o “direito ao projecto” e de chamar a atenção para que a possibilidade de realizar projectos nas escolas não estava a ser respeitada, por não lhes serem proporcionadas as adequadas “condições”, considerou que aquilo a que se chama “cultura de escola” é a “cultura do funcionalismo” do Estado (uma “entidade que ninguém percebe quem é”). Era a primeira vez que ele estava tanto tempo na mesma escola, pelo que só agora se apercebia das “profundas relações que se estabelecem [nelas]”, ou seja, “aquilo que a gente quer dizer quando fala na cultura de escola”, e que “não vai mudar nos próximos séculos”. Para ele, as escolas eram “instituições anti-projecto”, porque os professores têm nela um grande poder, exercido através da avaliação dos alunos, e porque a maioria dos Conselhos Directivos procura controlá-la em seu benefício. O que existia de interessante nas escolas eram as “bolsas de resistência”, sendo a partir delas que podia haver alguma frontalidade em relação a esse duplo poder. A “condição de profissional da educação”, concluiu o Zé, deveria equivaler a estar “na escola de corpo inteiro”, nas aulas e fora delas; para se implementar um projecto não é possível fazê-lo sózinho, pois há constantes exigências para o “reflectir”, para o “reformular”, para o “reapreciar”.
Por isso, na altura em que foi entrevistado, aquilo que o Zé gostava de fazer “era ir experimentar outras coisas", pois na escola não via “condições de mudança”. Talvez iniciar um “projecto novo”, como “uma cooperativa ou coisa do género”. Mas, interrogou-se, receava que “o sistema” acabasse por fechar essa via, pois os miúdos, “mais tarde ou mais cedo”, terão de entrar nele, terão de “fazer exames e provas pedagógicas, e exames profissionais”, problema que já havia sido colocado pelo Movimento da Escola Moderna: aí os miúdos têm “direito à palavra”, a “questionar o professor”, a “questionar o poder do professor” e o seu “poder de saber”; mas mais tarde esses alunos iam “com a mesma postura” para a escola oficial e eram “cilindrados pelo sistema”, eram “considerados irreverentes, mal-educados”.
O que atraíu inicialmente a Filomena Teles na escola foi a possibilidade de aí fazer “trabalho extra-curricular”, tendo a “profissionalização em exercício” sido uma primeira oportunidade para isso. E a Escola Cultural foi uma outra, dando “mais importância à formação integral do aluno” e exigindo que as actividades escolhidas fizessem “parte do Plano de Escola, com objectivos, com estratégias de trabalho, com uma série de preocupações que ligavam o que se passava nos clubes aos objectivos gerais dos currículos”; mas quando os professores que não estavam interessados em “mudar” notaram que os alunos aderiam a esse tipo de actividades, desencadearam-se os “conflitos”.
Por isso, a certa altura, a Filomena procurou realizar actividades semelhantes às extracurriculares nas suas aulas, onde não teria de enfrentar conflitos provocados por outros professores. E mais tarde interessou-se pelo trabalho com os seus colegas do Núcleo da APM no AlterMATivas e no MATlab, pois aí se poderiam realizar “actividades que não estavam directamente ligadas aos objectivos do programa”.
No entanto, desabafou a Filomena, todas estas actividades dependiam do ambiente da escola, e esta cada vez dizia menos aos alunos: até ao início do 3º Ciclo a escola ainda lhes dizia qualquer coisa, a partir daí a “sociedade”, através dos “valores” que a “comunicação social” transmitia, tinha “mais força”, e a “cultura da escola” não a conseguia contrariar, porque leva muito tempo a mudar (não adiantando tentar mudá-la “por decreto”); alguns anos antes ainda havia uma abertura à mudança mas, naquela altura, o “retrocesso” era enorme, com cada vez mais “problemas sociais”, pedindo-se à escola que os combatasse “com armas que não [têm] a mesma força” que a da televisão.
Por isso, desejou a Filomena, teria “piada” que o grupo do AlterMATivas e do MATlab, tal “como ele está, com as experiências enriquecidas que tem, fosse trabalhar todo para uma escola”, por exemplo uma “escola integrada”, onde pudesse fazer uma experiência” de desenvolvimento dos alunos, “não só na Matemática”, também com psicólogos e sociólogos, com a sociedade “mais dentro da escola” e com a escola “mais cá fora”, de modo a que “as próprias famílias se fossem modificando e tivessem um papel”, como talvez já acontecesse na Escola Primária.
Comentários
Estes três testemunhos tiveram dois aspectos fortemente em comum: por um lado, olharam de um modo muito crítico para as escolas e, um pouco, para o Núcleo da APM; por outro, preocuparam-se menos com os condicionamentos externos do que com a procura de uma continuação para o trabalho conjunto que até aí tínhamos feito.
A Rita não encontrara na sua escola gente com quem trabalhar em grupo. A Filomena deparara, nas escolas que conhecera, com muitos professores que estavam contra as «mudanças». E o Zé, em vez de colegas com uma atitude profissional «de corpo inteiro», encontrara nas escolas por onde passara muitos «funcionários do Estado», que usavam a avaliação dos alunos (ou os cargos directivos) como fonte de poder, deduzindo daí que as escolas seriam «instituições anti-projecto», apenas confrontáveis por algumas «bolsas de resistência».
Por isso a Filomena, considerou que os projectos em que se envolvera com colegas do Núcleo da APM tinham sido uma solução para as dificuldades que encontrara; mas, para a Rita, também estavam a surgir sinais preocupantes no Núcleo, pois muitos dos professores que aí se tinham inicialmente envolvido estavam a desviar a sua atenção para outras prioridades.
Segundo a Rita, uma explicação para a redução do interesse em trabalhar no Núcleo poderia estar na Reforma Curricular que se estava a generalizar, quer pelos desafios que a sua implementação na escola colocava, quer porque esses colegas preferiam o apoio que os novos manuais escolares lhes trouxeram.
A negatividade do «balanço» feito pela Rita, pelo Zé e pela Filomena encontrou um eco só parcialmente esperançoso quando eles formularam o que desejavam para o «futuro».
A Filomena gostaria que o grupo com que trabalhara nos projectos, em vez de estar disperso por várias escolas, se transferisse para uma mesma escola, onde dispusesse de condições institucionalizadas para fazer um trabalho com maiores hipóteses de sucesso; mas, receou ela, ainda seria necessário enfrentar a influência crescente que a «sociedade», via «meios de informação», exercia sobre os alunos.
O Zé imaginou uma «cooperativa» onde pudesse concretizar «projectos» (para o que seria necessário reunir um grupo com as mesmas intenções); e, tal como a Filomena, receou o que aconteceria aos alunos quando fossem envolvidos no choque entre esse isolamento e a realidade exterior.
E a Rita, mais próxima da realidade em que estávamos, apenas gostaria de fazer um «levantamento» do que estava a ser dispersamente feito, para poder imaginar que ligações estabelecer entre todas as iniciativas que estavam em curso, admitindo, no entanto, que os colegas poderiam não estar interessados nisso.
Sentíamo-nos isolados, procurávamos uma solução para a nossa vontade de intervir e de cooperar, mas estávamos bastante cépticos.
Já não me recordo claramente do que eu próprio sentia nessa altura. Mas como tinha decidido entrar no mestrado [testemunho «090»], a minha escolha terá sido «aprender mais» e, ao investigar com novos conhecimentos, «compreender melhor» o que me rodeava. E só depois decidiria o que fazer, mantendo entretanto contacto com a minha escola e com o Núcleo.
Mas havia muitas coisas que estavam a mexer nesses anos de transição para a segunda metade da década de 90, algumas delas já identificadas, retrospectivamente, nos testemunhos anteriores:
* Acabava de ser decidido que o próximo Encontro Nacional de Professores de Matemática (ProfMAT), organizado pela APM, se iria realizar, no final de 1996, em Almada; mas essa decisão fora tomada sem consultar os sócios do Núcleo da APM em Almada e Seixal, embora dependesse inevitavelmente do apoio de muitos deles, pelo que teria consequências no trabalho aqui realizado; foi um sinal de que o associativismo a nível nacional começava a impor interesses que podiam não coincidir com o associativismo regional;
* O início da Reforma Curricular absorvia muitas atenções dos professores que a implementavam; foi o caso da Área Escola, que mobilizou alguns grupos de professores mas que também gerou fortes indiferenças, ou até alguma resistência, por parte doutros [testemunho «086»];
* Uma minoria dos professores não se sentia confortável com a Reforma Curricular que estava a ser generalizada, sentindo-a já como tendo falhado; se eles procuravam manter a sua «autonomia» (iniciativas curriculares próprias; formação contínua independente), a maioria dos seus colegas hesitava acerca dos exemplos em que se deveria inspirar, se nos do Ministério da Educação, se nos do Ensino Superior, se nos dos seus colegas mais «autónomos» [testemunho «090»];
* À medida que a generalização da Reforma Curricular foi sendo feita, alguns professores do ensino superior começaram a pretender «ensinar os professores do ensino não superior» (e não apenas os futuros professores) [testemunho «090»]; paralelamente, começaram a surgir medidas que tornavam a formação académica hierarquicamente mais importante que os outros tipos de formação [testemunho «092»];
* As escolas estavam a ser gradualmente envolvidas na elaboração de um Projecto Educativo próprio; o poder de um tal instrumento, ao desencadear os interesses de quem o queria usar a seu favor, obrigou todos os outros actores a esforços mais intensos e apressados para o transformar em ferramenta comum [testemunho «088»];
* Alguns parceiros das escolas começaram a propor-lhes «grandes iniciativas» destinadas à sua «participação», o que alienou as alienou do controlo sobre as iniciativas em que se envolviam; a «naturalização» destas «parcerias», a vontade que alguns desses parceiros tinham em hegemonizar certas áreas da educação e a fraca vontade de autonomia da maioria dos professores, impediu que este problema fosse atempadamente identificado [testemunho «087»];
Havia, pois, uma profunda mas silenciosa mudança em curso, e todos nós estaríamos com bastante dificuldade para a apreender e indecisos acerca do que deveríamos (e poderíamos) fazer.
Fontes:
Wikipédia (para os ministros da Educação)
Pedro Esteves / Arquivadores digitais «Tese de Mestrado» (Doc.s: 4EXPR11, 4EXPR12, 4EXPR13, 7ANEX3, 7ANEX4 e 7ANEX6)
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