Memórias
Quando a reforma curricular se iniciou no 7º ano, em 1992-93, fui manuscrevendo uma espécie de «diário» sobre o que preparava para as minhas aulas e, sobretudo, sobre o que depois se passava nelas. Um problema que os alunos levaram para casa e que correu bem a todos (devem ter estado em contacto uns com os outros), foi o do «último algarismo de uma potência de 2», que pode ser enunciado assim:As primeiras potências de 2 são:
21 = 2
22 = 4
23 = 8
24 = 16
25 = 32
26 = 64
27 = 128
28 = 256
29 = 512
210 = 1024
Será possível, a partir destas potências, determinar qual o algarismo das unidades de, por exemplo, 2200?
Uma das ideias por detrás deste problema era a de levar os alunos a perceber os limites da máquina de calcular, concluindo que, quando ela não pode resolver directamente um problema numérico será necessário procurar métodos indirectos.
O leitor deste blogue pode, aí em casa, proceder às suas próprias experimentações deste problema (tem certamente uma «máquina de calcular» associada ou ao seu computador ou ao seu telemóvel).
Quando a reforma curricular chegou ao 8º ano, em 1993-94, continuei a manuscrever o «diário», tendo então um pouco mais de tempo para o fazer, pois já não estava envolvido no projecto AlterMATivas.
Eis um dos problemas que propus e que durou duas aulas a resolver (naquela altura elas duravam apenas 50 minutos):
Enquanto no problema anterior a «máquina de calcular»
tinha um papel limitado, neste outro os «materiais manipuláveis» eram
indispensáveis (pelo que desta vez será difícil ao leitor proceder às
experiências necessárias para resolver este problema, pois pouca gente terá um
conjunto de «polydron» em casa).
Ainda em 1993-94, o problema que para mim teve mais piada foi proposto às
minhas três turmas do 8º ano no início da última semana de aulas:
A soma das idades de Pai, Mãe e Filho é de 91 anos.
A Mãe tem mais 25 anos que o Filho e o Pai mais 5 anos que a Mãe.
Qual é a idade de cada um dos membros desta família?
Disse aos alunos que não iria avaliar as respostas, que era só para
perceber como eles resolviam o problema e que respondessem individualmente. Mas
eles, habituados a interagir durante as aulas, e não havendo restrições devidas
à avaliação, acabaram por cruzar muitas conjecturas, refutações e
contra-conjecturas.
Escrevi no tal «diário»:
“Na turma G, onde observei com mais cuidado o que
se passava, verifiquei que o primeiro resultado «colectivo» (mas não atingido
por todos ao mesmo tempo) foi a determinação de que na altura da nascença os
pais teriam 25 e 30 anos, portanto 25 + 30 = 55 e 91 – 55 = 36; aqui surgiu a
primeira crise, com o filho «a ter 36 anos, mais do que a idade dos pais»”.
Depois, foram sendo descobertas várias estratégias:
a) dois alunos do 8º G perceberam que teria de ser 36 : 3 = 12 e daí obtiveram 12
anos, 25 + 12 = 37 anos e 30 + 12 = 42 anos;
b) seis alunos do 8º C e um do 8º D partiram da data de nascimento; foi o caso da
Ana Salvador e da Marta (do 8º C), que atribuiram para essa data F = 0, M = 25
e P = 30, pelo que, ao se fazer F = 5, se teria M = 30 e P = 35; e se F = 10,
etc., e se F = 11, etc., e se F = 12, etc., só agora conseguindo que F + M + P
= 91.
c) dois alunos do 8º G usaram um processo muito semelhante ao anterior, partindo
de que M + P = 55 e notando que em cada ano que passava haveria mais 3 anos distribuídos
pelos três familiares, assim continuando a ser até que a soma das idades atingisse
os 91 anos;
d) quatro alunos do 8º D fizeram deduções a partir dos 91 anos, mas três deles
foram muito pouco claros; o único correcto (Bruno Godinho) considerou a
«distância» entre as idades, sendo o seu método muito próximo do método a);
e) um aluno do 8ºD tentou usar traços (uma fila de 5 e outra fila de 15) como
suporte, mas não atingiu nenhuma conclusão.
Comentários
Uma questão que penso não ter colocado a propósito do primeiro problema, mas
que hoje acrescentaria, foi: como podemos «ter a certeza» de o padrão 2 – 4 – 8
- 6 se ir sempre repetir?
A resposta prática que seria considerada suficiente: porque o algarismo das
unidades resulta exclusivamente da multiplicação de «2» pelo anterior algarismo
das unidades.
O segundo problema levanta-me uma questão em relação às ferramentas que hoje
existem: em vez de usar os «polydron», poder-se-á hoje fazer o mesmo com os
computadores (que mais dificilmente simula as três dimensões), tendo o mesmo
efeito nas aprendizagens?
Quanto ao meu problema preferido, se a ideia foi observar como os alunos
encontravam um método de resolução que funcionasse, a realidade mostrou que surgiram
várias ideias interessantes, que algumas delas foram comentadas dentro de cada
turma, e que uma boa parte dos alunos conseguiu chegar a um resultado correcto.
Curiosamente, tendo estas turmas já conhecimento da ferramenta «resolução de
equações», ninguém seguiu por essa via (e havia nelas alunos formalmente muito
bons; mas também havia alunos informalmente muito bons). No entanto, as
estratégias de resolução seguidas por estes alunos possuem, no seu âmago, ingredientes
subjacentes à estrutura lógica das «equações» (aspectos aditivos, subtrativos,
multiplicativos e divisivos).
Já havia colocado este problema a outras turmas e voltaria a fazê-lo em anos
posteriores. Quando foram alunos do Secundário a tentar resolvê-lo, foi mais
frequente o uso de uma «equação», tendo até sido usado um «sistema de
equações».
Desenho feito ontem na areia da Costa da Caparica |
Ao centro, em cima, três barras representando as idades a determinar (com as diferenças «5» e «25» assinaladas). E à esquerda e em baixo os principais cáculos a fazer (91 – 55 = 36 : 3) ...
Para quem gosta de estudar o pensamento humano: coloquem este problema aos vossos amigos!
Fontes: Pedro Esteves / Arquivador de documentos analógicos ESJA Seis (Doc.s 10 e 11)
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