[071] Uma apreciação do Projecto AlterMATivas, três décadas depois (III)

Estudo de caso


O projecto AlterMATivas, depois de terminado, foi alvo de três vagas reflexivas: a das entrevistas que realizei, no final de 1995, à Rita, ao José Tomás e à Filomena, destinadas a fundamentar a minha tese de mestrado; a da própria tese, só concluída no início deste século; e a que está em curso através deste blogue, começado há quase ano e meio. Todas estas reflexões visaram, e ainda visam, o conjunto das iniciativas levadas a cabo em torno do Núcleo da APM em Almada e Seixal, que esteve activo de 1989-90 a 2001-02.

Para pensar o AlterMATivas e o que ele nos pode sugerir sobre a profissão docente abordarei neste testemunho e nos dois seguintes as questões colocadas no início deste estudo:
a) Que filosofia pedagógica foi concretizada através da interacção entre alunos e professores?
b) Que filosofia profissional resultou da interacção entre os professores e o projecto?
c) Que ambiente profissional resultou da interacção entre este projecto e os seus contextos?


As reflexões depois do projecto: sobre os alunos

No final do projecto, a resposta dada à primeira daquelas questões poderia ter sido, tal como fiz ao concluir o anterior testemunho: a equipa do AlterMATivas assumiu a iniciativa curricular, ao desenvolver uma alternativa à pedagogia tradicional, e criou, nas escolas, novos espaços de ensino-aprendizagem, como os clubes, as ludotecas e os laboratórios.
Mas que alternativa pedagógica foi afinal desenvolvida, qual o seu benefício para os alunos e que nos diz o processo da sua formulação e implementação sobre a profissão docente?

O problema da «pedagogia»

As entrevistas que realizei nos finais de 1995 tinham como um dos seus temas os três grandes projectos interescolas que tinham sido realizados nos anos anteriores em torno do Núcleo da APM. Nelas, os comentários feitos aos aspectos pedagógicos e didácticos do AlterMATivas foram muito desigualmente desenvolvidos Nota 23.

Na entrevista à Rita, ela estabeleceu um contraste entre os modos de trabalhar no AlterMATivas e no MATlab, os dois projectos que, durante dois anos, foram implementados em simultâneo. Enquanto no MATlab se trabalhara bastante livremente, no AlterMativas “tínhamos de ver o que é que queríamos”: se “vamos ensinar isto”, então “vamos fazer esta ficha”; depois, numa das reuniões seguintes, um de nós trazia uma proposta para essa ficha, que era pormenorizadamente analisada, de tal modo que “aquilo era tudo desmontado!” Assim, muitas das versões finais das fichas que produzimos não eram de quem as tinha proposto, eram de todos.
O José Tomás também não se alargou em apreciações, escolhendo realçar a influência do AlterMATivas no modo como passou a olhar a “sala de aula”: para ele, o projecto “foi bestialmente rico”, foi uma “síntese” de “todo um conjunto de coisas” que estavam a ser propostas pela APM, pelo que, na altura em que a entrevista decorreu, a forma como trabalhava com a Matemática e levava os alunos a gostar da Matemática, “isso aí acho que foi um grande contributo do AlterMATivas.
Na outra entrevista, a Filomena pormenorizou o que acontecera na sua sala de aula. Para ela, este projecto permitia que os alunos tivessem oportunidades para “brincar”, para “manipular” e para se “expressar”, pelo que “se envolviam naquilo que estavam a fazer”, o que era “extremamente importante” para ela, “sentir que eles não estavam lá maquinalmente”. Se o AlterMATivas se preocupou com os “objectivos que íam estar mais explícitos na Reforma que ía entrar, embora os conteúdos [...] fossem do programa antigo”, ele também permitiu momentos, nas aulas, em que se conversava sobre o relacionamento entre alunos, pois eles por vezes são “pouco tolerantes” uns com os outros: quando estavam vários “à volta de um material para resolver um determinado problema” eles tinham de aceitar “regras” que “não podem ser impostas”; o professor sabe “mais ou menos quais terão que ser”, mas devem ser os alunos a formulá-las e a aceitá-las.
Assim, para a Filomena, não sendo possível “desenvolver seja o que fôr sem que o aluno de facto esteja envolvido”, então é necessário “criar um espaço em que a personalidade, as emoções, a afectividade [...] possam estar presentes”. E este projecto possibilitava isso.
Por outro lado, prosseguiu ela, o “próprio material” usado no projecto permitia que os miúdos reflectissem e encadeassem os seus raciocínios, contrariamente ao que sucede no ensino-aprendizagem mais tradicional; neste, e na melhor das hipóteses, o aluno tenta “estar atento”, para perceber quais são as “regras” e ver se elas resultam; e quando o professor dialoga, visando chegar a uma “conclusão”, há um aluno que diz uma coisa, há outro que diz outra, “e o professor pega naquelas peças todas, junta o puzzle, «já cheguei aonde eu queria»”, e “espeta aquilo no quadro convencido que toda a gente percebeu”; e como os alunos “passam para o caderno, eles já sabem que é aquilo que têm de saber e «está a aula dada»”.
Portanto, para a Filomena, o AlterMATivas permitiu superar as limitações da pedagogia tradicional. Mas, acrescentou ela, a sua concretização revelou algumas dificuldades em relação aos alunos e aos seus pais.
No AlterMATivas, os alunos gostaram do modo de trabalhar nas aulas, por ser “diferente” e “muito mais aprazível”, mas, sobretudo entre os considerados “bons alunos”, não se sabia bem o que as actividades realizadas tinham a ver com a Matemática pelo que “há um grupo de alunos que acaba sempre por criar uma certa instabilidade neste tipo de trabalho”. Ora a Escola Secundária Anselmo de Andrade, onde a Filomena dava aulas, está situada numa “zona em que as pessoas são desafogadas economicamente”, havendo muitos pais que envolvem os filhos em múltiplas actividades fora da escola, inclusive explicações, e “os explicadores não percebiam muito bem o que é que se estava a fazer” nas aulas, tecendo diversas “críticas” e considerando que se estava a avançar “devagar” no programa. Por isso, na primeira reunião da Directora de Turma com os pais estes queixaram-se e a Filomena decidiu escrever-lhes uma carta que, se os acalmou, não impediu que se mantivesse um “mau-estar” por parte de cinco ou seis alunos que estavam habituados à “sequência” tradicional da aula de Matemática: “há uma parte teórica, há uma parte de aplicação, uma parte de exercícios”, terminando com o “trabalho de casa”.
Concluiu, portanto, a Filomena: “quando se fala em ter que mudar muita coisa no ensino da Matemática, infelizmente a Matemática mexe tanto com os pais e com a sociedade que eu acho que tem que se começar a mostrar provavelmente a Matemática de uma forma diferente à sociedade.

Estas entrevistas mostraram como o AlterMATivas proporcionou diferentes experiências a cada um dos membros da equipa que o implementou. Ele foi para a Rita, tal como para mim, mais uma oportunidade para explorar os caminhos não tradicionais na sala de aula; para a Filomena e o José Tomás, o projecto parece ter sido o momento em que descobriram também ser possível trabalhar na sala de aula de um modo tão interessante como nos espaços extracurriculares; e, para os outros membros da equipa, dada a sua menor experiência como docentes, o AlterMATivas pode ter sido algo ainda mais fundamental, mas não tenho pistas sobre o que eles terão pensado.

Às diferentes experiências que o AlterMATivas proporcionou aos professores juntaram-se as diferenças entre as escolas e as turmas. Eu não tive os problemas com os pais, de que a Filomena se queixou e que ocorreram em pelo menos mais uma escola (neste outro caso os pais apaziguaram-se após terem recebido uma cuidada resposta colectiva por parte da equipa). Teríamos nós informado bem cada uma das escolas envolvidas sobre o nosso objectivo, se era «trabalhar com uma diversidade de alunos», se era «trabalhar especialmente com os alunos sentem mais dificuldades»?

Por fim, cada professor terá feito as suas próprias escolhas sobre como trabalhar na sala de aula. Tendo em conta o que conversámos sobre a reacção dos nossos alunos a cada uma das nossas fichas, é possível que toda a equipa tenha previlegiado o trabalho ao nível da turma (todos estariam em potencial interacção com todos), recorrendo depois ao trabalho individual e ao trabalho entre pares (os alunos sentados à mesma mesa), tendo o trabalho de grupo sido promovido, pontualmente, por apenas alguns professores.

Assim, ao nos prepararmos para as aulas como equipa mas ao defrontarmos situações de implementação muito distintas, não admira que no Relatório Final tenham sido identificadas diversas incompletudes no nosso planeamento lectivo: a inclusão de “estratégias anuais para a resolução de problemas”; a “integração das questões levantadas pelos alunos nos percursos investigativos das turmas”; a “passagem do problema para a situação problemática”; as “conexões” entre temas matemáticos; a ligação entre a “experimentação de situações com carácter particular” e o “estudo de casos gerais”, de modo a estruturar matematicamente a experiência (“a generalização, a formalização, a demonstração”); a “integração da avaliação formativa no processo de ensino-aprendizagem”; e a escolha de “variantes na gestão da aula, em função dos diferentes objectivos desta.Nota 24

Hoje, por estar muito mais distanciado em relação ao AlterMATivas, coloco-lhe ainda uma outra questão, relacionada com o binómio pedagogia / didáctica.
Ao observar as fichas de trabalho que produzimos (elas são o centro dos respectivos materiais estruturados), fui-me recordando do modo como as preparámos. Ao começarmos a abordar um novo tema matemático (seguíamos aproximadamente a ordem do programa ainda em vigor, o anterior à Reforma de Roberto Carneiro) listávamos as suas dificuldades didácticas, muitas delas associadas a circunstâncias lectivas mais tradicionais; e depois juntávamos os recursos de que dispúnhamos e que procurámos. E, claro, tínhamos em mente o que a reforma cuja chegada estava eminente prometera vir a ser. Ora todas estas circunstâncias tinham a ver com um ensino-aprendizagem directo da «Matemática». Portanto, sem que disso nos apercebêssemos, estávamos a dar maior atenção ao «conteúdo disciplinar» em vez de dar maior atenção ao que eram «os nossos alunos». Assim, o nosso enorme esforço de criação de desafios para serem assumidos activamente pelos alunos, permitir-lhes-ia, com o nosso apoio, compreender directamente a Matemática, sem passar por mediações culturais. Estávamos, sem disso nos apercebermos, a confirmar o diagnóstico negativo que Karl Popper havia feito sobre as escolas: “a nossa pedagogia consiste em sobrecarregar as crianças com respostas, sem que elas tenham colocado questões, e às perguntas que fazem não se presta atenção”. Nota 25
Uma parte importante do contexto profissional em que a equipa trabalhou, por estar focada na «unicidade da Matemática», dificultou-nos a atenção às «diferenças entre alunos»; a que se juntou, nalgumas turmas (como as que a Filomena descreveu), a atenção exigida por alguns pais (e alunos).

Se, à partida, o professor carrega consigo um conjunto de orientações curriculares e as suas próprias escolhas e o aluno entra na aula com uma mochila cheia pelo mundo exterior, o seu face-a-face pode ser mais ou menos um encontro:


O AlterMATivas deveria ter apostado fortemente na compreensão prévia deste encontro, o que talvez só tivesse sido conseguido se toda a equipa possuísse uma maturidade curricular que nenhum dos seus membros ainda não tinha.
Talvez o Laboratório de Matemática, que unia os três grandes projectos interescolas promovidos no contexto da acção do Núcleo da APM, pudesse ter contribuído para evitar o encerramento do AlterMATivas na Matemática. O MATlab propusera-se criar e institucionalizar em cada escola “um espaço, a ser utilizado livremente pelos alunos, com condições para a realização de actividades e para a exploração de desafios de carácter matemático (em sentido amplo)”, e que permitisse “a interacção com as actividades curriculares” e “a dinamização e integração de iniciativas a nível das comunidades” em que essas escolas se inseriam. Com isso, esperava-se “o enraizamento das práticas de pesquisa matemática em cada Escola; o aligeiramento das fronteiras entre o curricular e o não-curricular; a dinamização das permutas da Escola com o meio circundante; e, finalmente, a institucionalização dos espaços físicos suporte das iniciativas realizadas e dos recursos (humanos e financeiros) nelas investido, de modo a que, globalmente, se desencadeie um processo irreversível.” Havia aqui uma tímida consciência do «sentido amplo» que se podia conferir à actividade Matemática e a abertura desta às «comunidades». Mas o que o AlterMATivas usufruiu do MATlab foi sobretudo a acção didáctica em «sentido estrito», de que são exemplos o «Cálculo de
P» e as «Demonstrações do Teorema de Pitágoras».

O problema do «sucesso»

O único levantamento do «sucesso escolar» do AlterMATivas ocorreu, como já foi referido acima, no final de 1990-91, dizendo respeito a apenas dez das nossas turmas: 89 % dos alunos transitaram do 7º para o 8º ano e 83 % tiveram positiva a Matemática.
Nos dois anos seguintes a equipa, ou o seu coordenador, não foram capazes de voltar a coligir estas (parcas) informações. Mas, agora, houve tempo, ou motivação, para fazer essa recolha em relação à minha escola, pois guardei os respectivos dados.

Dado este projecto ter sido concretizado durante os últimos anos em que a frequência do 3º Ciclo não era obrigatória, não considerarei a seguir os casos de «abandono escolar», apenas a «transição de ano» (que envolve todas as disciplinas) e a «classificação a Matemática».
As turmas em que o coordenador do AlterMATivas esteve envolvido na Escola Secundária Nº 1 do Seixal ao longo dos três anos deste projecto e as respectivas percentagens de transição de ano foram as seguintes:


Excepto no caso da turma do 9º ano (a única, em todas as escolas envolvidas neste projecto, que incluía alunos que acompanharam o AlterMATivas ao longo do 7º, 8º e 9º anos), o insucesso escolar situou-se entre os 21 % e os 24 % (valores muito altos para os actuais padrões). Mas compreender este insucesso exige poder compará-lo com o verificado nos anos anteriores e nos anos posteriores, nesta e em outras escolas, pelo que, sem esses dados, nada mais posso acrescentar ao que eles poderiam elucidar sobre o contexto que a minha escola proporcionou ao AlterMATivas.

No entanto, porque possuo as percentagens de sucesso em Matemática nestas turmas, o meu desempenho como intérprete deste projecto pode ser analisado. Discriminando e depois agregando os níveis de «1» a «5», elas foram as seguintes:




Em 1990-91 e em 1991-92 o insucesso em Matemática foi um pouco superior ao insucesso na transição de ano lectivo (destaques a amarelo); e em 1992-93 o insucesso em Matemática nas turmas do 7º ano foi bastante inferior ao da transição de ano e na turma do 9º ano foi equivalemte (e relativamente baixo, embora ainda alto para os actuais padrões).

Nestes dois primeiros quadros, tanto o sucesso escolar como o sucesso em Matemática em 1990-91 e em 1991-92 foi claramente inferior aos valores médios declarados sobre as 10 turmas envolvidas no AlterMATivas em 1990-91, e nas quais as do coordenador do projecto se incluíam. Sem mais dados sobre todas estas escolas não é possível estabelecer hipóteses interpretativas acerca desta diferença.
Mas a distribuição dos níveis que atribuí nas minhas turmas correspondeu à observação feita no final do primeiro ano do projecto (e já referida acima): “Os melhores resultados parecem-nos ocorrer com a vasta faixa dos alunos médios.

Com os dados que recolhi sobre as minhas turmas é ainda possível comparar os resultados em Matemática e os obtidos em outras disciplinas. Escolhendo as disciplinas de Português, pela sua tradicional centralidade curricular, Ciências da Natureza (no 7º ano) e Física-Química (no 8º e 9º anos), por talvez serem as disciplinas que mais usam a Matemática Nota 26, eis o que obtive (estão assinalados, em cada linha horizontal, a amarelo a percentagem mais alta de «1 e 2» e a azul a percentagem mais alta de «4 e 5»):


O nível «3» oscilou entre 56 % e 68 % em Ciências da Natureza (CN) / Física-Química (FQ), entre 42 % e 65 % em Matemática e entre 60 % e 68 % em Português, sendo sempre a percentagem mais elevada em cada uma destas disciplinas. A disciplina de Matemática mostrou maior irregularidade na atribuição deste nível, sendo a única que, em dois dos casos, o atribuiu a menos de metade da turma.
A agregação dos níveis «1 e 2» oscilou entre 0 % e 42 % em CN / FQ, entre 8 % e 27 % em Matemática e entre 8 % e 30 % em Português. Matemática e Português atribuíram percentagens deste nível muito semelhantes (excepto às turmas do 7º ano de 1992-93).

E a agregação dos níveis «4 e 5» oscilou entre 2 % e 42 % em CN / FQ, entre 23 % e 33 % em Matemática e entre 3 % e 25 % em Português. Verificou-se uma maior dispersão nos casos de CN / FQ e Português e percentagens mais regulares (e mais altas) em Matemática.
Pode-se portanto afirmar que os resultados escolares (medidos pelos níveis finais atribuídos) tanto se assemelharam entre a Matemática e as CN / FQ (oscilação entre o melhor e o pior) como entre Matemática e Português (menor oscilação entre os níveis extremos). E também se pode afirmar que Matemática terá tido, em média, percentagens de «4 e 5» um pouco superiores às das outras disciplinas.
Mas não se pode afirmar que o insucesso na disciplina de Matemática foi notavelmente reduzido, ou seja, que o objectivo central do AlterMATivas terá sido plenamente conseguido nestas turmas.

A hipótese que me parece mais forte para explicar este «insucesso relativo» do projecto é a aventada acima: o currículo desenvolvido pelo projecto centrou-se mais na Matemática e não tanto nos Alunos e no Mundo Nota 27.
Devem, no entanto, ser colocadas outras hipóteses interpretativas deste relativo insucesso do AlterMATivas (pelo menos) na minha escola.
Uma hipótese diz-me exclusivamente respeito: ter-me-ei disperso demasiado durante estes anos (no Núcleo da APM, com o AlterMATivas, o MATlab e o Grupo de Trabalho do 5º e 7º ano; na minha escola, com a Ludoteca e o Projecto Vida; na APM, com a criação do Centro de Formação).
E a outra hipótese diz respeito à possível influência da Reforma Curricular sobre o projecto: os seus enunciados eram didacticamente interessantes, mas pedagogicamente conservadores, e a equipa do AlterMATivas (que não era homogénea), para poder começar a trabalhar em conjunto, centrou-se (inconscientemente) no que era mais fácil de atingir. Pelo que, como professor, eu talvez tenha agido um bocado conservadoramente porque não suficientemente atento às «diferenças» entre alunos.

Comentários e propostas

Estas reflexões sobre os problemas da «pedagogia» e do «sucesso», mais as que se seguirão sobre outros problemas que o AlterMATivas enfrentou, além de permitirem uma melhor compreensão deste projecto, são sobretudo motivadas pela intenção de, tomando este caso como exemplo, identificar campos e processos através dos quais os professores, em qualquer das suas intervenções profissionais, se auto-e-ecoproduzem.
Vale por isso a pena revisitar quatro das conclusões da tese de mestrado (apresentadas sob forma proposicional) em que as iniciativas em torno do Núcleo da APM em Almada e Seixal, entre 1989 a 1996 (pelo que incluíam o projecto AlterMATivas), foram por mim estudadas Nota 28. Elas ajudam-nos a identificar alguns dos campos em que aquela auto-e-ecoprodução se manifesta.
* Primeira das proposições a revisitar: “Os espaços incorporaram a acção profissional dos professores.” Referia-me aos três espaços onde, genericamente, decorreram as acções empreendidas pelos professores que estudei: o da «aula», o «fora da aula» e o «associativo». Depois desta síntese, chamei a atenção para como um novo tipo de «acção» (caso da Matemática experimental) podia levar à criação de um novo «espaço» (neste caso foi o Laboratório de Matemática, uma das variantes dos espaços «fora da aula»), pois o espaço que já estava disponível não era o mais adequado (“a sala de aula pareceu induzir o método expositivo”, acrescentei). E, como advertência, concluí: os espaços “tanto são limitadamente moldáveis como passivamente conservadores.
* Segunda das proposições: “As ferramentas inscreveram a acção profissional dos professores.” A principal das acções profissionais que identifiquei (para além da acção lectiva, claro) foi a construção de “ferramentas educacionais” (os inquéritos, as fichas de trabalho, os materiais manipuláveis, etc.); mas também referi a construção de “ferramentas organizacionais” (o Núcleo, os encontros entre professores, os projectos, etc.), através das quais foi possível multiplicar as “potencialidades das ferramentas educacionais (nomeadamente para mobilizar e articular saberes internos e externos)”. E comentei que a associação entre estes dois tipos de ferramentas produziu “efeitos sobre os espaços profissionais: nas escolas, através da constituição de um ambiente favorável à interligação de iniciativas dispersas e, no associativismo local, através do desenvolvimento de uma rede de apoios profissionais.” E, ainda, que em todos os casos que tinha analisado “recuou a tradição de estabelecer externamente os objectivos de mudança e cresceu a categorização interna dos espaços, que passaram assim a constituir marcos para a identificação profissional (os projectos, a ludoteca, o laboratório, as realizações inter-escolas, o Núcleo associativo local, etc.).” Portanto, concluí: se os espaços “operam através do implícito”, as ferramentas “favorecem a explicitação dos processos e a exploração das potencialidades.
* Terceira proposição: “O aluno foi encarado sobretudo como pessoa envolvida num processo educativo.” E argumentei assim: “Os professores preocuparam-se acima de tudo com a participação dos seus alunos enquanto pessoas, o que implicou referências à aceitação das suas culturas de pertença. Assim, e pelo menos na escolaridade obrigatória, a aprendizagem da Matemática surgiu para os docentes como parte de um processo educacional mais geral, do qual pode estar metodologicamente dependente. Como consequência, as teorias da aprendizagem foram encaradas pelos professores como menos relevantes do que as teorias da educação e a construção educacional foi feita sobretudo a partir do concreto e menos como dedução derivada de uma teoria. Esta centração no aluno surgiu como condição para a realização de mudanças tanto curriculares como não-curriculares.
* Quarta proposição: “O problema central da didáctica é o da organização da participação pluralista.” A escrita desta síntese baseou-se em duas constatações: a “heterogeneidade das escolhas didácticas do corpo docente” e a tendência dos “reformadores” para “centrar as suas propostas na sala de aula”. Constatações que depois comentei assim: é na sala de aula que os professores conservadores se sentem mais à vontade, pelo que “o problema da didáctica equivale a saber como se podem realizar experiências de ensino-aprendizagem no seio do sistema tradicional e a saber como é possível aproveitar positivamente a interacção entre as dinâmicas resultantes de princípios profissionais muito diferentes.

Foram deste modo identificados alguns dos campos em que é expectável observar o processo de auto-e-ecoprodução da docência. Mas não foram claramente apontados os limites dessa produção pela equipa que implementou o AlterMATivas (não era esse o objectivo da tese).
Sobre esses limites, resumo agora o que o escrito acima sugere: os campos identificados nas duas primeiras conclusões (as que referiam os «espaços» e as «ferramentas») foram plenamente explorados (embora, pelos diversos membros da equipa, muito heterogeneamente); os campos identificados na terceira conclusão (a que referia os «alunos») só parcialmente foi explorado (os alunos foram considerados mais como indivíduos do que como seres que transportavam diferentes patrimónios culturais e o processo educacional mais geral em que eles estavam inseridos, para além da escola, nunca foi identificado, ajudando a que a «pedagogia» fosse reduzida à «didáctica» e que esta fosse «centrada na Matemática»); e os campos identificados na quarta conclusão (a que referia a «participação pluralista») foram interpretados como um alerta do AlterMATivas (aos professores e aos futuros reformadores) sobre os desafios da heterogeneidade dos alunos (objectivo central deste projecto) e dos professores (o que era, para a equipa do projecto, uma novidade).

Com a distância entretanto obtida em relação à acção estudada, que permite considerar como depois dela a educação (não só) em Portugal mudou, eis algumas propostas muito abertas:
* Revisitar as reflexões que procuraram libertar a educação dos seus constrangimentos conservadores. Por exemplo, as escritas pelo Sebastião da Gama durante o seu estágio profissional, entre as quais destaco esta: “Cada vez me apetece menos classificar os rapazes, dar-lhes notas, pelo que eles «sabem». Eu não quero (ou dispenso) que eles metam coisas na cabeça; não é para isso que eu dou aulas.Nota .29. O que impressiona nesta frase é o seu carácter peremptório, que pode ser interpretado como um protótipo da afirmação de um direito profissional, o de «não ser para isso que se dá aulas».
* Reflectir sobre as potencialidades e os limites de outras experiências que têm enfrentado desafios semelhantes ao do AlterMATivas. Uma delas, a do Movimento da Escola Moderna, pressupõe a aceitação prévia, por parte de um grupo de professores, de um plataforma pedagógica bem definida. E uma outra, a do MUED (uma associação de professores de Matemática alemães Nota 31), considera que não basta que a escola enriqueça a Matemática com as suas ligações à Realidade, é necessário que ela mobilize “um terceiro polo completamente independente: os alunos”, pelo que se deve perguntar: “Será possível formular objectivos de ensino para a Matemática que ajudem os alunos a pensar por si próprios? Será possível construir uma forma de ensino que favoreça o caminho para a autonomia da tomada de decisões e a responsabilidade social dos alunos?Nota 32.
* Clarificar o papel dos alunos na escola (os saberes que procuram; o modo como pretendem construi-los; as formas pelas quais desejariam ser avaliados; as consequências dessa avaliação).
* Clarificar as experiências pedagógicas que procuram encontrar novos caminhos (os seus objectivos; a responsabilidade que a escola tem em relação a elas; os direitos e os deveres dos seus autores e actores; as possibilidades de as sequenciar, de modo a serem uma oportunidade de aprendizagem longitudinal; as suas ligações de cada uma a outros projectos, quer semelhantes, quer diferentes).


Notas finais à IIIª parte:

Nota 23: No início do projecto circulou entre a equipa o esquema didáctico proposto por Brousseau, e divulgado entre nós pelo Henrique Guimarães e pela Leonor Moreira (consultar o testemunho «016»), que se baseava numa sequência de dialécticas, a da «acção», a da «formulação» e a da «validação»; nunca chegámos a debater esse esquema, mas ele esteve implícito na estratégia escolhida para muitas das nossas abordagens. É possível utilizar esse esquema referindo-o a pedagogias distintas, mas a equipa nunca sentiu necessidade de explicitar uma

Nota 24: Houve também aspectos dilemáticos no planeamento, sobretudo no primeiro ano do projecto: a lentidão com que os primeiros temas foram abordados, a fim de não perder o contacto com nenhum aluno, levou a atrasos irremediáveis no «cumprimento do programa»

Nota 25: Popper, em debate com Lorenz (1990; p. 49)

Nota 26: Não me recordo de nenhum dos professores que leccionaram Ciências da Natureza, Física- Química e Português a estas turmas

Nota 27: Década e meia depois de concluído o projecto AlterMATivas, um balanço feito sobre o Plano de Acção da Matemática (implementado a nível nacional, visando, através do “trabalho colaborativo” dos professores, uma “mudança de práticas” lectivas e a uma aproximação entre a Matemática aprendida na “sala de aula” e a aprendida “noutros espaços”) concluiu que os alunos participantes e que no final do ano lectivo tinham declarado ter maior “interesse, auto-confiança” e maior “envolvimento no trabalho em Matemática” foram, em geral, os que, “no passado, já não apresentavam os maiores problemas na aprendizagem da Matemática”. Pelo que, a terminar, se questionava: “será que já encontrámos o caminho certo para chegarmos àqueles que estão mais desinteressados, desmotivados, com maiores dificuldades de aprendizagem? Será que estamos a construir um currículo em que temos uma matemática para todos?” (Santos, 2008) Penso que o problema deste «plano» era o mesmo (a uma escala bem maior) que afectou o nosso simples «projecto»

Nota 28: Estas conclusões figuram no ponto 1.2 do capítulo 7 da tese

Nota 29: Gama (1970)

Nota 30: A associação MUED (Mathematik-Unterrichts-Einheiten-Datei, designação que se pode traduzir por Base de Dados para o Ensino da Matemática) foi fundado, em 1977, por um grupo de professores de Matemática alemães insatisfeitos com as formas predominantes de ensinar. Através da cooperação entre os seus sócios, propuseram-se “construir passo a passo unidades de ensino”. “O material é desenvolvido gradualmente, através de repetidas experimentações, até se chegar a um modelo aperfeiçoado. A cooperação, ainda que difícil, demonstrou ter tido sucesso.

Nota 31: As referências ao MUED são devidas a Böer e Meyer-Lerch (1989; pp. 201-202)

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