Memórias
“Eu acho que as coisas às vezes acontecem na vida das pessoas por acaso”, disse-me a Filomena, logo no início da entrevista que lhe fiz, em Novembro de 1995, “há um acaso feliz que leva as pessoas a correrem” e “«olha! pode ser que seja isto»”.Entre dois estágios
Quando acabou os estudos no Secundário a Filomena escolheu Medicina, esteve em Medicina, e depois mudou para Matemática “por problemas unicamente familiares”: “tinha que fazer uma coisa mais rápida e escolhi a Matemática porque pensei, bom, para ser rápido e não fazer aquilo que eu quero, vou fazer uma coisa que em princípio no Secundário nunca tinha tido grandes problemas ... e achava interessante”. Mas esta escolha não foi com a intenção de vir a “ser professora”, mas sim “para trabalhar em Matemática Aplicada”.
A meio do curso deu-se o 25 de Abril, com todas aqueles desafios “sociais que se colocaram e que mexem um bocado connosco, e que na altura, no final do meu curso, criaram imensos problemas de se conseguir emprego na área da Matemática Aplicada”. “Então aconteceu-me a mim o que aconteceu a muita gente nessa altura, que foi, eu preciso de um emprego, preciso de trabalhar, e vou dar aulas.” Mas “nem sabia, nem imaginava o que é que seria”.
Entrou para o ensino em Maio de 1976, para “dar Francês”. No ano seguinte, 1976-77, colocada numa escola do Ciclo Preparatório, leccionou Matemática e Ciências Naturais. E só em 1977-78, desta vez na Veiga Beirão, em Lisboa, apenas leccionou Matemática, à noite, pois durante o dia precisava de fazer o estágio em Matemática Aplicada, num Banco. A Veiga Beirão “era uma escola extremamente convencional, com imensas lutas lá dentro”, “foi um ano muito quente e havia reuniões gerais de professores todos os dias, enfim, grandes polémicas, lavajens de roupa suja e não sei quê - nada que levasse, até ali, a estar atraída pelo ensino”.
Assim, para a Filomena, ir ensinar foi “porque a pessoa precisa de dinheiro, mas depois, quando a pessoa começa a pensar, e começa a estar por lá”, vê “o que é dar aulas, o que será provavelmente ser professor”, e aí é que se coloca a questão “se eu fico por aqui ou se eu me vou embora”.
Foi “por acaso, não por um projecto de vida que eu tivesse definido e que tivesse seguido, mas um bocado porque as coisas vão acontecendo.”
Como por essa altura começou a profissionalização em exercício (uma modalidade de formação inicial para professores que já estavam a ensinar, e que decorria totalmente na escola), a Filomena decidiu-se pelo estágio, mas quis fazê-lo fora de Lisboa, tendo sido colocada em Faro, em 1978-79.
Quando o terminou ela ainda não tinha decidido se optaria exclusivamente pela docência, pelo que regressou a Lisboa para concluir o estágio científico, em 1979-80, acumulando-o com aulas em regime misto, uma turma de dia e as restantes à noite, numa escola próxima, a Dona Maria Iª. Esta experiência também não lhe trouxe razões para se decidir definitivamente sobre o seu futuro.
Almoço do primeiro dia 1º Encontro Regional de
Professores de Matemática, na Escola Secundária do Seixal, em Julho de 1991: a Filomena é a segunda a contar da direita |
Contacto com escolas «diferentes»
Em 1980-81 a Filomena foi colocada na margem Sul, onde se manteria até ao fim do
seu percurso profissional. Tratava-se da Escola Secundária da Amora, uma escola
nova, com professores também muito novos, e talvez por isso o ambiente era
diferente dos que ela conhecera nas escolas por onde tinha passado em Lisboa e
em Faro: “havia um grupo de pessoas que se mexia e
que tentava fazer qualquer coisa lá dentro” (alguns estavam na
profissionalização em exercício) e isso levou-a a começar a ver a escola de uma
forma diferente.
No ano seguinte, 1981-82, foi
colocada na Escola Secundária Nº 1 do Laranjeiro, onde esteve dois anos. A
perspectiva que se lhe começou a abrir sobre “o que
poderia ser a escola, do que era a escola, do que devia ser a escola
[...] mexeu um bocado comigo, porque a ideia que eu
tinha de escola era a escola que eu tinha frequentado [como aluna], que era o Liceu Dona Filipa, [aonde] eu ia, tinha as minhas aulas e vinha para casa, havia lá
umas actividades circum-escolares [...] mas
[...] não havia uma dinâmica de escola, [e a
Nº 1 do Laranjeiro] foi de facto a escola que mexeu
comigo, e é isso no fundo que me levou depois, nessa fase, a fazer um balanço e
a pensar que se calhar é aqui que eu quero [...] estar, porque há outras compensações na vida que não sejam o dinheiro
e que não sejam [...] uma carreira
reconhecida, [...] mas para mim nem era o
problema da carreira, era [...] ser um
trabalho que mexe com o raciocínio”; e a “informática”,
a “programação”, etc., “foram coisas, provavelmente por defeito de formação, por
ser uma formação em Matemática”, que mexiam com ela, por gostar de “resolver problemas”, de “fazer
um programa para resolver uma situação”.
Se essa foi a razão pela qual a Filomena decidiu continuar a leccionar, o seu “percurso a partir daí é um envolvimento sobretudo mais
nas actividades extra-aula”, “não é a aula
de Matemática em si, mas é o resto.”
Foi aí, no Laranjeiro, que ela se começou a envolver nos jornais escolares. Na
altura não havia computadores nas escolas e por isso o jornal “mexeu com vários grupos disciplinares, mexeu com a
Educação Visual, para a maquetagem, [...] os
miúdos [tinham de procurar] notícias [e]
esta era uma actividade que permitia mexer imenso
com a escola e que me levou no fundo a contactar com os miúdos e a vê-los de
forma diferente, do que eu poderia vê-los na aula de Matemática, porque eu
penso que o professor de Matemática, [...] por
causa do tema da aula, é provavelmente dos professores todos o que se calhar
tem mais dificuldade em conhecer os alunos no sentido de que [...] os temas que foca não são muito propícios a outros tipos
de conversa. Penso que um professor de línguas ou um professor de História, ou
um professor até de Biologia, porque as coisas estão mais ligadas à vida e tal,
provavelmente conseguem mais facilmente extrapolar para o dia-a-dia e conhecer
melhor os miúdos, e portanto, para mim acaba por ser um contacto com os alunos
a nível diferente e a tentar ver o professor como não só aquele indivíduo que
tenta arranjar as melhores estratégias para o aluno saber Matemática, ou
conhecer a Matemática, ou trabalhar dentro da Matemática, mas tentar ver o
aluno como um indivíduo que no seu todo está a crescer, e há uma série de
coisas que mexem com ele, e que se calhar a Matemática é importante mas não é
assim tão importante.”
O primeiro conflito cultural
Depois de dois anos no Laranjeiro, a Filomena foi colocada no Pragal. Aí conheceu
a Ângela Queiroz, que lhe falou num projecto que estava para começar, o
Minerva, “e que metia o Spectrum, ela tinha um
Spectrum em casa, já, e eu, na altura, como já vinha com o bicho da informática,
[...] é evidente que não foi muito difícil
[...] começar a mexer com isso.” Mas o
Pragal ficou-lhe na memória sobretudo por “um
grande projecto”, que ela a Ângela e mais gente desenvolveram, o “Grupo de Intervenção Cultural”. A escola estava a
atravessar uma fase muito má, e nós “decidimos
pegar nos professores da escola que de facto estavam dispostos a fazer coisas”,
eles aderiram e “houve imensos clubes a funcionar,
houve o jornal, houve a informática, houve dança, houve teatro”, “sem exagero, umas sete ou oito áreas a funcionar e no fim
do ano fizemos um sarau com todas as actividades que a escola tinha a funcionar
e não só.” “Fomos [também] à procura de actividades que os miúdos desenvolviam fora
da escola, que nós nem sabíamos, e que achámos que era interessante as que
pudessem estar no palco [...] para as
pessoas saberem [...], por exemplo, o jogo
do pau, havia uma data de miúdos a fazer o jogo do pau e que tinham essa
actividade fora da escola”. Com essa iniciativa, e apesar de a escola
ser “extremamente convencional”, conseguiram implicar o Conselho Directivo e o
Conselho Pedagógico. O “sarau não foi feito na
escola, foi feito numa colectividade, foi na S.R.U.P. [Sociedade
Recreativa União Pragalense], e havia um certo
pudor dos professores de irem até ao S.R.U.P., porque o S.R.U.P, enfim, era
frequentado por gente, enfim, de camadas muito baixas [...], quando nós fomos falar com o S.R.U.P. o S.R.U.P. ficou
surpreso connosco, de os professores estarem interessados numa coisa daquelas,
mas eles de facto tinham um palco, [...] e
foi a primeira vez que isso aconteceu, ou seja, a escola saíu fora [...]
das suas paredes, foi ali para o S.R.U.P, que é
mesmo ao lado, mas o que é facto é que os professores da escola [...] ficaram surpresos com aquilo que viram”; “tínhamos
um grupo de teatro muito bom na escola, porque tínhamos a Maria Santos à
frente”, “e as pessoas não imaginavam o nível que
os miúdos da área de Teatro (porque nós tínhamos a área de Teatro no 9º ano)
atingiam. Digamos que foi uma maneira de as pessoas, elas próprias professoras,
de verem a escola de uma forma diferente, porque os miúdos de facto tinham
outras actividades fora da escola, [...] que
fazem parte da formação dos miúdos, [havia um] mundo
paralelo à escola que o professor de uma forma geral ignora.”
“Mas isso foi uma coisa que deu um bocado cabo de
nós, porque nós para fazermos isso tudo, se por um lado conseguimos envolver
muita gente, por outro lado tivemos que sustentar muitas guerras, foi, é
horrível mas é verdade, desgastou-nos um bocado, e nós saímos um bocado as
duas, eu e a Ângela, um bocado aborrecidas do Pragal, porque achámos que
tínhamos dado muito mais do que aquilo que tínhamos recebido, tínhamos tido de
facto imensos problemas”.
“Aquela escola [...] na altura era muito convencional e vinha com vícios muito de trás,
[...] quando alguém tenta inovar há sempre uma
interrogação que se coloca, [...] «o que é
que estes querem?», «o que é que eles pretendem atingir?»” Na altura
ainda não havia a preocupação com a “carreira",
mas “as pessoas sentiam-se incomodadas, porque no
fundo havia coisas que o Conselho Pedagógico devia assumir e não assumia,
[...] essa dinâmica que existia não tinha nada a
ver com o Conselho Pedagógico, tinha a ver com um grupo de gente nova, que estava
na escola e que queria fazer coisas diferentes, mas em que o Conselho
Pedagógico se sentia um bocado em falta, nós conseguimos envolver alguns
membros do Conselho Pedagógico, que eram pessoas interessantes, o caso do
professor Pedreira de Educação Física e da esposa". Mas o Conselho
Directivo tinha um presidente ainda “demasiado
director”, e “sentia que as coisas lhe
fugiam das mãos ou pensava que nós provavelmente estávamos a envolver
demasiados professores” e que isso poderia ser uma eventual candidatura
para o próximo Conselho Directivo, “e não era nada
disso”; “no fundo nós tentávamos mudar a
escola e fazer com que a escola fosse um espaço agradável onde as pessoas
gostassem de estar, mas isso desgastou-nos muito, desgastou-nos muito mesmo a
nível do próprio grupo, [...] os professores
de Matemática não percebiam [...] porque é
que um professor de Matemática tem que estar metido nessas coisas”.
O segundo conflito cultural
Em 1984-85 a Filomena saiu do Pragal, com a Ângela, tendo ambas sido colocadas na
Escola Secundária Anselmo de Andrade.
Aí, entrou “numa de não me meter absolutamente em
nada, [...] ser um professor normal, dar as
minhas aulinhas, ir-me embora, num sítio onde ninguém me conhece”. “Só que a Anselmo fica ao lado do Pragal e portanto é muito
difícil, eu penso que as coisas passam e as pessoas souberam o que a gente
tinha lá feito, porque essas coisas sabem-se”.
Esse era o segundo ano da Escola Cultural. No primeiro ano tinham sido escolhidas
25 escolas para experimentar este projecto e agora abrira concurso a nível
nacional para que as escolas se candidatassem. A
presidente do Conselho Directivo”, a Lucília, falou-lhe nisso, “porque a escola estava muito murcha, porque havia que
fazer coisas e tal, ela sentia-se também um bocado isolada e tinha necessidade
de mexer um bocado com a escola”, pelo que a Filomena, que “tinha este bichinho” dos projectos, aceitou
envplver-se em mais um. Foi elaborado um projecto experimental para o ano em
curso, enquanto se preparava, para o ano seguinte, a candidatura a nível
nacional. O projecto experimental envolveu muitos professores, foram criados “17 clubes, e nós de facto mexemos se calhar demasiado com
a escola e foi tanto, tanto, tanto”, que a própria presidente levantou
problemas, no princípio não muito abertamente, “porque
as pessoas continuam sempre com a mesma preocupação, «o que é que esta fulana
quer»”, “[«ela] está a mexer demasiado e não
convém mexer tanto»”, e “o que é facto é que
eu tive problemas outra vez”.
A candidatura nacional à Escola Cultural foi aprovada, tendo sido atribuídos
600 contos à escola, mais 200 contos em livros atribuídos pela Gulbenkian
através da candidatura a um outro projecto.
A Lucília tinha pensado no Filomena para vir a coordenar a Escola Cultural no
ano seguinte, 1985-86, mas ela já não o queria fazer, pois duvidava da “margem de manobra” que lhe seria dada: “quem manda no dinheiro é que controla tudo, e de facto
quem manda no dinheiro é o presidente do Conselho Directivo”, “e de facto havia imensos problemas porque as pessoas
queriam dinheiro para que os clubes funcionassem e o dinheiro não era
disponibilizado”.
“Há maneiras de, no fundo, controlar as coisas”:
se o presidente do Conselho Directivo está interessado em fazer um projecto,
fala com alguém que sabe ter alguma experiência”,
que faz um projecto, a escola candidata-se e se a escola ganhar, para “ter algum benefício
disso”, vai “controlar tudo isso”,
deixando as coisas correr quando isso for em seu benefício, mas, “quando vir que
isso está a correr para outro lado, fecha os apoios.
“Uma pessoa sente-se um bocado um boneco, não é,
sente-se um bocado um boneco, de uma coisa que não tem nada a ver com o que eu
estou a fazer”. “Levantaram-se tantos
problemas às pessoas, tantos, tantos, tantos, tantos, que as pessoas acabaram
no ano seguinte, no final do projecto, por me dizer assim, olha Filomena, nós
gostamos imenso de ti, eu gosto imenso do que ando aqui a fazer, gostei de
algumas coisas do que fiz, não gosto destas lutas, porque todas as pessoas se
sentiram no fundo um bocado em conflito, mesmo quando o conflito não era
directamente com elas e era comigo, portanto eu queria que as coisas
funcionassem, queria que as pessoas tivessem condições, porque queria que essa
dinâmica não se perdesse, indirectamente as pessoas acabavam por ter conflito
porque elas próprias tinham elaborado um projecto do seu clube e queriam
levá-lo à prática [...]. As pessoas o que
acabaram por me dizer é que não estavam dispostas a participar numa coisa que
lhes trazia tanto conflito, ou que trazia conflito nem que fosse pequeno”,
“e que fariam as mesmas coisas com os seus alunos
através das suas aulas”.
Foi o caso do clube de cinema: a sua colega, que era de Filosofia, “além de pôr os
miúdos a trabalhar com a câmara de video, [punha-os] a fazer entrevistas” e a participar no jornal da
escola, promoveu “ciclos de cinema em que o cinema
se discutia”; ela pegava, por exemplo, no Charlie Chaplin “e a partir daí ela teve que meter isso nas próprias aulas”
e “discutir várias questões relacionadas com a
Filosofia, através do cinema”. Essa colega chegou um dia ao pé dela e
disse-lhe: «Filomena, “sabes, eu possa fazer estas
coisas através da minha disciplina, com os meus alunos, tenho prazer na mesma,
sei que mexo com eles, sei que mexo só com os meus alunos, é um facto, mas
lamento imenso, [...] o resto das polémicas
que se arranjam à volta [...] não é o que me
faz estar na escola, e portanto isso cansa-me e eu não estou para andar
cansada, esgotada, aborrecida, sempre com receio [do] que as pessoas interpretem»”.
Antes, durante os dois anos no Pragal, a Filomena tinha estado ligada ao Projecto Minerva, mas, na Anselmo, só o voltou a estar em 1987-88, “para desenvolver um projecto na área do jornal.” Como “a colega que tinha ficado com o jornal era uma colega de Português, [pela] ligação, digamos, entre o que se está a fazer na aula” e a “experiência de execução de um jornal”, “o apoio que eu dava, estando no Minerva, era mais o apoio logístico, dar aos miúdos a formação [de processamento de texto]”; “outro apoio que eu dava era o transmitir um bocado a minha experiência [à colega, para] facilitar um bocado o trabalho e para ela reflectir um bocado o que é que queria fazer”; "estive, eu penso que foi só um ano, no Minerva com isso.”
Uma reflexão transformadora
“Eu quando [...] fui dar aulas, no fundo fui um bocado [...] a imitação [do] que os meus professores me faziam quando eu era aluna no Liceu Filipa de Lencastre”. “Só que [...] eu gostava de Matemática, Matemática era uma coisa que me divertia e sempre me divertiu muito, divertia-me a fazer exercícios de Matemática, divertia-me a resolver problemas de geometria, eu lembro-me [...] que tinha muita facilidade para aquilo e divertia-me de facto com aquilo, gostava de pensar e achava que o raciocínio era uma coisa belíssima, lindíssima, e sentia-me extremamente frustrada de não conseguir fazer com que os alunos gostassem, não digo tanto de Matemática como eu, mas pelo menos não estivessem nessa situação de a Matemática é um horror.” E “no fundo o meu trabalho era isto, era tentar arranjar processos diferentes de os pôr a executar as coisas com mais facilidade, ou seja, eles tinham que resolver determinados exercícios, então eu andava à procura de técnicas [...] para os fazer executar os exercícios, [mas] a perspectiva era unicamente [...] de lhes facilitar a vida e de lhes dar receitas, [...] ao fim e ao cabo era dar-lhes receitas, e quando depois começo a ter a consciência de que de facto o que eles queriam era a receita, e o que eu estava a fazer era no fundo um caminho para que eles chegassem à receita, não é, e depois eles sabiam a receita e faziam os exercícios mas não eram capazes de resolver um problema, de mexer com as coisas, de ligar, de lerem um enunciado, [...] isto é uma segunda fase que eu tenho, [...] que me deixa muito insatisfeita, porquê, porque no fundo [...] eles não gostam de Matemática [mas] têm de saber Matemática [...] e agarram-se à receita e de facto eles não apreciam a Matemática como eu a aprecio, e então começei a fazer um balanço, o que é que eu gostava na Matemática, o que é que mexia comigo”. No modo “como resolvia os problemas [...] havia uma certa emoção”, “eu lia um problema, [...] sentia o desafio [...] e não saía dali enquanto não resolvesse, [...] emocionalmente eu estava envolvida naquele problema”; “e se eu fosse fazer um balanço dos alunos todos que eu tinha tido, [...] se eu conseguisse arranjar [...] vinte alunos [...] que vissem a Matemática de uma forma diferente e que se conseguissem emocionar com a própria Matemática, seria muito, e portanto [...] eu sentia que o aluno tem que ser desenvolvido em todas as suas áreas e sentia que a adesão a qualquer coisa, e hoje isso para mim é bastante claro, eu adiro a uma coisa que mexa com as minhas emoções, e de facto a Matemática é uma área que nós temos que saber mexer com as emoções dos alunos e eu não estava a conseguir isso através de todas as estratégias que eu arranjava para que eles ficasse a saber as receitas.”
Comentários
A propósito das entrevistas que realizei ao José Tomás [testemunho «050»] e à Raquel [testemunho «060»] lembrei-me de quatro das dez conclusões da minha tese de mestrado, que também seria adequado lembrar a propósito desta entrevista com a Filomena.
No fundo, a tese também se baseava nestes meus colegas, pelo que foi natural que pelo menos uma parte das suas conclusões tivessem sido lembradas a propósito destas entrevistas.
Eis os títulos dessas quatro conclusões:
Os professores envolveram-se enquanto pessoas na profissão.
O envolvimento profissional dos professores apoiou o seu desenvolvimento pessoal.
Os espaços incorporaram a acção profissional dos professores.
As ferramentas inscreveram a acção profissional dos professores.
A releitura e resumo da entrevista à Filomena (agora feita, quase trinta anos depois!) lembrou-me, especialmente, duas outras das conclusões da minha tese. Transcrevo-as a seguir, na íntegra:
O aluno foi encarado sobretudo como pessoa envolvida num processo educativo.
Os professores preocuparam-se acima de tudo com a participação dos seus alunos enquanto pessoas, o que implicou referências à aceitação das suas culturas de pertença. Assim, e pelo menos na escolaridade obrigatória, a aprendizagem da Matemática surgiu para os docentes como parte de um processo educacional mais geral, do qual pode estar metodologicamente dependente. Como consequência, as teorias da aprendizagem foram encaradas pelos professores como menos relevantes do que as teorias da educação e a construção educacional foi feita sobretudo a partir do concreto e menos como dedução derivada de uma teoria. Esta centração no aluno surgiu como condição para a realização de mudanças tanto curriculares como não-curriculares.
A dinâmica cultural só se consolidou através da afirmação dos seus valores.
Nalguns casos, os professores expressaram a sua dinâmica cultural sobretudo através da acção e da interacção profissional. Quando assim foi, e de acordo com as anteriores proposições, os valores encontraram dificuldades quer no campo dos deveres (a responsabilização foi condicionada pelos limites externos à intervenção e a organização profissional pelo questionamento da predominância da horizontalidade das interacções), quer no campo dos direitos (a iniciativa não esteve sempre garantida na escola e só muito limitadamente foi apoiada pela afirmação do colectivo). Noutros casos, a dinâmica cultural dos professores baseou-se, também, na explicitação dos valores. Quando se afirmou a necessidade de partilha e a importância da iniciativa, tornou-se mais fácil aos professores anteciparem mudanças, sobretudo no momento em que o contexto lhes era favorável (caso de as suas ideias convergirem com as reformistas no plano educacional); nestas circunstâncias, a articulação entre a organização profissional e a assumpção da palavra foi suficiente para dar início à elaboração de estratégias de desenvolvimento profissional, individuais e colectivas, com efeitos nos espaços, nas ferramentas, nos saberes, nas identificações e nas oposições.
Fontes: Pedro Esteves / Arquivador digital Tese de mestrado (4EXPR 13) / Livro (Esteves, 1998; ponto VII.1.2.9) / Álbum de fotografias analógicas ESJA 4 (F102: 22 [fotografia recortada])
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