Quando eu quis estudar, através de uma tese de mestrado, estas
e outras iniciativas dos professores de Matemática nesta região, um dos
professores que entrevistei foi o Zé. A entrevista foi realizada no dia 16 de
Novembro de 1995.
Segue-se um resumo do que o Zé me disse, organizado por épocas do percurso
pessoal e profissional (as citações são do entrevistado; os destaques, a
vermelho, são meus).
Os anos como professor em Tondela
O Zé começou por estudar em Tondela. Depois, terminado o Secundário, veio estudar
Engenharia para o Instituto Superior Técnico, em Lisboa.
Em 1975-76, quando frequentava o 3º ano, já estava “farto do Técnico”. Inscreveu-se
para diversos empregos e também concorreu para professor: foi colocado em
Tondela para dar aulas de Educação Visual.
Tinha lá “um grupo de rapaziada conhecida”, todos com vinte e tal anos, e o
momento político que se vivia levou-os a ligar-se à Comissões de Melhoramentos
(“uma parte do concelho não tinha electricidade, não tinha água”) e a criar uma
Associação Cultural, um Infantário, o Grupo de Teatro Trigo Limpo, Cursos de
Alfabetização e um jornal regional. Eram actividades que utilizavam as instalações
da escola, embora tivessem pouca ligação com ela.
Assim, “durante quatro anos toda a minha vivência da escola passa muito pelo
exterior da escola”, o que se tornara possível por haver lá aquele grupo de professores
“mais animados”, que fazia “esta transposição para o trabalho cá de fora".
Na escola propriamente dita não fizeram um “grande investimento”, a prioridade
era a “ligação à comunidade” e a “afirmação” contra o “caciquismo local”. Nesses
anos o Zé aprendeu e descobriu “algumas das coisas” que “gostaria de fazer”.
Foi por esta altura, em que o Sottomayor Cardia era o Ministro da Educação, que
surgiram as questões do “poder” e da “estruturação” das escolas, e, lembrou o
Zé, “durante algum tempo até fui delegado sindical”, com envolvimento em “algumas
das lutas, das greves”.
Surgiu então o “dilema” entre ficar na escola ou ir acabar Engenharia. Foi nessa
altura que o Zé decidiu “ficar mesmo na escola”, mas ainda sem pensar em
leccionar Matemática.
“Gostei muito de dar Educação Visual”, “era uma área giríssima de intervenção”,
“com tudo aquilo que eu gosto na escola”, “os espaços exteriores de animação” e
de “intervenção”, capazes de “surpreender os miúdos”, que chegam “com
determinados valores culturais, [...] e a escola pode ser um momento de rasgo,
um momento de os confrontar com novas experiências e novas vivências”. E a
Educação Visual era para isso “um espaço excelente. Português também seria um
espaço excelente”. E igualmente a História, não a curricular, “mas a percepção
da História no seu todo”, com consequências “na história de cada um.
A conclusão do curso em Lisboa e o
estágio no Barreiro
O curso onde as cadeiras de Engenharia seriam mais aproveitáveis era a
Matemática. E assim o Zé regressou a Lisboa, onde, de 1979 a 1982, concluiu o
Curso Geral de Matemática na Faculdade de Ciências de Lisboa, durante o dia,
dando aulas de Matemática em diversas escolas, à noite.
Ao regressar à Faculdade depois dos anos de interrupção em Tondela, o Zé
percebeu a “incongruência daquela instituição”. Nos anos anteriores tinha
andado a “estudar a vida”, a ver e a “ouvir coisas, a investigar, a
experimentar, [...] a reflectir”, e na Faculdade percebe “como aquele estudo é
livresco”, embora, por vezes, tenha “pontos de reflexão interessantes e novas
pistas, mas [...] afunila as coisas”. A Matemática leccionada era “extremamente
formal”: uma vez entrou numa aula e sentiu que o que a professora dizia era
como se estivesse “a falar chinês”. Por isso, chegou a pensar no regresso a
casa – “«Estou tramado, nunca mais vou acabar»” o curso.
Teve de “marrar desgraçadamente” para acabar o Curso Geral: “foi um horror, foi
uma coisa extremamente pesada”; mas, desde que conseguido, pensou ele, seria
capaz de concluir qualquer outra coisa.
Ao começar a leccionar Matemática, por contraste com a Educação Visual, o
Zé teve medo, pois se lembrava da Matemática “árida”, de que os miúdos “não gostam”,
pelo que mudar para esta disciplina foi, nos primeiros anos, “um bocado chato”;
e os modelos lectivos de que se socorreu foram “perfeitamente clássicos”,
trazidos das escolas onde fora aluno.
No final do Curso Geral o Zé escolheu prosseguir pela via educacional. Quando a iniciou
“entrei no céu. Era onde eu gostava de estar.”
Para ele, “A Matemática era perfeitamente secundária”, poderia ter sido Física,
ou Ciências, o que ele queria era trabalhar com os alunos, “e não era tanto o
espaço aula”, “eu vou para o Educacional pelo espaço fora da aula”.
Com alguns dos seus colegas, quase todos vindos das Engenharias, formou “um
grupo de trabalho” que se mantém até ao estágio, que se orienta “para a intervenção
no próprio Educacional.” Através de um inquérito, obtiveram dados que depois
dirigiram para as várias cadeiras e para o lançamento de uma série de debates
dedicados ao “ensino da Matemática na Faculdade”.
E é assim que o Zé se começa “a virar para a Matemática” e a
sensibilizar-se para as questões da Metodologia do Ensino da Matemática, descobrindo
a Emma Castelnuovo e o Sebastião e Silva e achando interessantes as propostas
do Paulo Abrantes.
No entanto, o seu grupo de trabalho, dada a experiência que os seus membros já tinham
das escolas, pois já lá leccionavam, chegou à conclusão de que aquilo que se
discutia na Faculdade “não tinha nada a ver com os problemas concretos”, não
“questionava” nem “desenhava possíveis saídas”, pelo que começaram a travar
“batalhas interessantes” contra os professores “que vinham com modelos «os
livros dizem assim»".
O estágio,
correspondente ao 5º ano do Educacional, foi realizado no Barreiro, em 1983-84.
O seu grupo “conseguiu conduzir o processo”, pois “os orientadores eram
impostos pelo Ministério” e os futuros estagiários delinearam "os núcleos
de estágio” e conseguiram “impor alguns orientadores”.
O ano de estágio foi mais um ano em que o Zé trabalhou em grupo, “um grupo
muito giro”, instalado no Barreiro durante a semana, “aquilo era esgalhar e
partir”; o orientador desempenhou um papel “fundamentalmente facilitador”, não
interferiu “muito no nosso trabalho”, “deixou-nos andar”, respeitando
“absolutamente” as “opções” do grupo, “e se aquilo tinha a ver com a
Matemática, óptimo, se tinha a ver com o [quotidiano], também”.
Com base nesta sua experiência, o Zé proporia que a Formação Inicial de
Professores fosse baseada nas vivências pessoais, revelando uma certa simpatia
pelas potencialidades da modelo da «profissionalização em exercício», que
ligava o Professor às várias dimensões da Escola.
Os anos no Magistério Primário e na ESE
de Lisboa
Acabado o estágio o Zé foi destacado para a Escola do Magistério Primário de
Lisboa, onde esteve em 1984-85. E no ano seguinte transita para a Escola Superior de
Educação (ESE) de Lisboa, que veio substituir o Magistério; e onde
acabara de entrar “um conjunto de malta nova”.
Sendo necessário refazer todos os programas, “aquilo é uma descoberta”, sempre “à
procura de coisas novas”.
Uma experiência que marca especialmente o Zé é o “espaço comum, às Quartas-feiras,
ao longo de todo o dia, onde professores e alunos se organizavam por grupos,
cada um com o seu “projecto de trabalho” para o ano inteiro, sendo um dos
papeis dos professores definir pequenas etapas para cada projecto; esta
experiência, lembrou o Zé, iria ser mais tarde reinvestida na Área Escola.
O seu grupo de trabalho descobre a Escola da Torre, o Movimento da Escola
Moderna (que se inspira no Papi) e, na Matemática, descobre os “materiais
manipuláveis” como as barras Cuisenaire, os Geoplanos e os Blocos Lógicos.
“Para mim”, resumiu o Zé, “as grandes descobertas” dessa altura, além dos materiais
manipuláveis, foram “as intersecções com as outras áreas disciplinares” (o que
é “muito mais claro, e muito mais rico” no Primário, devido à “monodocência”) e
os computadores (com as ideias do Seymour Papert).
Foi nesta fase que esteve ligado ao lançamento e à coordenação do Projecto Minerva;
andou com os computadores TIMEX`s “às costas”, para fazer formação com eles;
aprendeu o Logo, o processamento de texto e a utilização da folha de cálculo; e
o grande desafio foi “a montagem dos Clubes, de experimentação, de encontrar
aquele espaço na escola, encontrar aquele espaço na relação com os
professores”, pois o corpo docente “é bestialmente resistente”.
Uma “discussão que houve muito acesa no Minerva”, lembrou o Zé, foi sobre se se
“devia logo inflectir para a sala de aula” ou se se “tinha que manter os Clubes
como uma fase de experimentação por professores e alunos e mais tarde passar
para a aula.” Segundo ele, “nunca foi possível resolver este problema” e “os
computadores nunca conseguiram sair muita da fase de Clube, de espaço
exterior”.
Os anos iniciais como professor no
Laranjeiro
Quando o Zé veio viver para a Margem Sul vinha a pensar nesta zona em termos de
“comunidade”, como em Tondela, se haveria por lá, por exemplo, algum “clube”. Foi
essa uma das motivações que o levou a impulsionar a criação do Núcleo Regional
da APM.
E foi através do Núcleo, e das duas primeiras escolas onde
leccionou (as actuais Escola Secundária Francisco Simões e Escola Secundária Rui
Luís Gomes), que entrou em contacto com novos professores de
Matemática.
Já havia sido na Escola Superior de Educação que o Zé começara a perceber “a
importância da sala de aula”, mas é quando começa a trabalhar com estes
professores que pela primeira vez o começa a aceitar “em termos de terreno”,
pois havia “propostas” e “desafios” suficientemente estruturados para entrarem
na serem usados, permitindo que se desse “essa descoberta”, do “descer ao
espaço aula, ao gozo de trabalhar a Matemática”.
Por outro lado, em termos de «projectos», o Zé encontrou nos professores do
Núcleo da APM os companheiros que lhe permitiram não os enfrentar “sozinho”,
daí o seu envolvimento mo AlterMATivas, no MATlab e no InterMAT, que também foram
apoios para outros empenhos nas suas escolas: os clubes de jogos e os
laboratórios.
Foi sobretudo na segunda escola onde leccionou que o Zé teve outra experiência
importante: “pela primeira vez tenho possibilidades de pensar um trabalho a
médio prazo, de investir num trabalho a médio prazo”, de realizar “a inserção
no mundo da escola”, e poder compará-lo com o que se passava noutras escolas
inseridas nos projectos colectivos do Núcleo.
Na sua escola, o Zé vai-se inserindo no Projecto Minerva, cria um Clube de
Jogos, depois avança para os projectos da «Sonora» e do «Multimédia»,
pretendendo com isso “criar um conjunto potente de possibilidades e de coisas
potencializadoras para as actividades dos miúdos e depois de projectos, de sala
de aula, fora da sala de aula, etc.”. Mas as “coisas não correram nada bem”,
desabafou ele, “acho que me correu muito bem a parte do trabalho com os miúdos,
as infra-estruturas ficaram montadas, mas depois falta a outra parte” – “como é
que tu integras aquilo na vivência da Escola”, pois essa “é uma outra fase, é
uma outra faceta dos projectos na escola”.
Em particular em relação ao Clube, onde 1992-93 foi um “primeiro ano
riquíssimo”, “giríssimo, com montes de potencialidades”. Pensando que ele estava
estabilizado, decidiu mobilizar os seus colegas de Matemática na direcção das
mudanças curriculares, deixando-lhes o Clube à sua responsabilidade; e os
colegas envolveram-se, retirando-se ele. “Infelizmente”, voltou o Zé a
desabafar, eles “iam lá abrir o Clube, ver se chegavam miúdos, se não chegavam
miúdos vinham-se embora ao fim de uma hora, fechavam”, “não conseguiram dar o
salto”, pelo que durante dois anos o Clube foi uma “experiência para esquecer”.
Quanto à sua experiência inicial no Clube, onde trabalhou o Logo com os alunos,
o Zé reparou que a “tentação dos miúdos ao programar é fazerem um jogo”, mas o
Logo para isso “é muito pobre e pouco rápido”, frustrando-os; e ele acabou por
não lhes encontrar “o desafio adequado”.
Foi ainda nesta escola que o Zé esteve envolvido na coordenação dos Directores
de Turma e no apoio ao Conselho Directivo (para a elaboração dos horários e para
o lançamento do projecto PEPT).
Comentários
Durante cerca de duas décadas, a seguir ao 25 de Abril, a enorme expansão
do número de alunos a frequentar o sistema educativo levou à entrada neste de
muitos jovens professores.
O José Tomás, bem como outros professores envolvidos no Núcleo da APM em Almada
e Seixal, foram exemplos desse enriquecimento geracional da docência.
Para muitos destes novos professores, não tinha sido inicialmente evidente a
profissão que acabaram por abraçar, o que lhes proporcionou anos de
experimentação de outras inserções sociais, cuja experiência trouxeram depois
para as escolas.
As duas primeiras conclusões da minha tese de mestrado basearam-se em testemunhos
como aquele que o José Tomás me prestou (além de outras fontes, materiais,
associadas aos professores envolvidos no Núcleo da APM).
Eis a transcrição dessas
conclusões:
Os professores envolveram-se enquanto pessoas na
profissão.
O envolvimento pessoal do professor foi sobretudo claro no início de carreira,
quando não existe ainda uma experiência profissional constituída. Então, a
construção já realizada como pessoa foi um forte recurso na procura de soluções
para a construção profissional a realizar na escola: o jovem professor
mobilizou o que já sabia e preferia e interveio do modo como acreditou ser
possível mobilizar os saberes e preferências de outros. Esse envolvimento da
pessoa prosseguiu posteriormente, sob a aparência, no entanto, de envolvimento
profissional, por se ter fundido com este: as diferenças entre os percursos dos
docentes parecem reflectir mais as escolhas que estes fizeram do que as
oportunidades de que dispuseram.
O envolvimento profissional dos
professores apoiou o seu desenvolvimento pessoal.
A mais importante das consequências pessoais da acção profissional dos
professores foi constituída pelo conjunto de transformações das suas
capacidades, atitudes e conhecimentos. Se apenas alguns dos professores, como
resultado das suas escolhas pessoais, desenvolveram as competências
particulares exigidas por certos espaços ou ferramentas, todos, através da sua
participação, puderam desenvolver as competências gerais necessárias para o
envolvimento na concepção, na intervenção e na regulação exigida pelos
processos colectivos. Os dilemas e incompletudes pessoais e profissionais
verificados nestes processos indicam que eles são uma função do tempo e sugerem
a existência de limites externos.
Fontes: Pedro Esteves / Arquivador analógico ESJA Três (Doc. 34) / Arquivador digital Tese de mestrado (4EXPR12) / Livro (Esteves, 1998; ponto VII.1.2.9)