[101] Duas fotografias a adendar a testemunhos anteriores

Memórias

Os documentos materiais são como as nossas memórias: por vezes encontram-se onde se fazem esquecer até que, inesperadamente, damos pela sua existência. Assim aconteceu com as duas fotografias reproduzidas abaixo.

A primeira foi tirada no dia 14 de Novembro de 1994 e nela são reconhecíveis o aluno Ricardo Barros (que tinha estado integrado em turmas minhas nos dois anos lectivos anteriores) e o professor de Educação Tecnológica José Calado. É possível que a aluna que está ao lado do Ricardo seja a Silvana. Eles estão rodeados pelo fumo das castanhas que assam numa fogueira improvisada no chão do campo de jogos do Pavilhão D da Escola Secundária José Afonso (local situado, mais ou menos, no extremo Sul do actual Ginásio):



A segunda fotografia foi tirada em Fevereiro de 1996 e ilustra o trabalho que eu fazia para a minha tese de mestrado (ver testemunho «093»). O velho computador da minha companheira, onde eu trabalhava digitalmente, está aberto; há alguma papelada ao lado do seu teclado e bastante mais sobre a mesa de trabalho onde me encontro (desde um arquivador e um livro abertos até a um documento que me prendia naquele momento a atenção); e há todos os pequenos objectos que as mesas de trabalho normalmente têm (destaco a chávena de chá e um instrumento musical de percussão). Pelo relógio (um despertador), parecem ser 10h25, pelo que a luz aberta do candeeiro de mesa indica que estaria escuro lá fora, talvez até a nevar (a janela ficava um pouco à esquerda do computador):


Comentários:

O Pavilhão D ficava no extremo Norte da escola, longe do conforto e portanto dos olhares dos Conselhos Directivos (exigia, para que lá se chegasse, a subida de umas escadas bastante ingratas). Escapa-me a razão pela qual se comemorou no dia 14 (uma 2ª feira) o São Silvestre (que ocorrera na 6ª feira anterior). E tenho a suspeita de que o Pavilhão D era uma espécie de «espaço por vezes autónomo» na escola, que me agradava muito, por isso mesmo (e, certamente, também aos alunos e a uns tantos professore). Era lá que se situava a Ludoteca.

A vastidão documental com que me estava a debater para trabalhar na minha tese, ilustrada por estarem tantos documentos, em simultâneo, à minha volta, mostra como uma investigação exige extensos cruzamentos de dados como as observações feitas, as entrevistas realizadas, os documentos recolhidos). Neste caso, tratava-se de uma investigação com um grau de exigência elevado, porque integrada nas práticas institucionalizadas da academia, que, em circunstâncias profissionais normais, ultrapassa o tempo e a energia que qualquer professor como eu lhe poderia ter dispensado.
Isso implica que os docentes do ensino não superior (e o mesmo pode ser dito em relação a outros profissionais), a quererem integrar num único processo a «inovação», a «formação» e a «investigação», como Rui Canário propôs [ver o testemunho «073»], precisam de exigir: (a) a si próprios, o desenvolvimento de técnicas para a realização de investigações ligeiras, cujos recursos estejam ao seu alcance; e (b) ao Estado, a disponibilização regular de condições para a realização de investigações mais profundas (associadas, por exemplo, aos seus projectos de maior envergadura).


Fontes: Pedro Esteves / fotografias familiares (tiradas, nestes casos, por Eva Maria Blum)

[100] Um breve balanço do Projecto MATlab (1991-96): entre os desafios da inovação e os problemas da organização

Memórias

Vários dos professores de Matemática que, em 1989-90, fundaram o Núcleo da APM em Almada e Seixal, já tinham a experiência educativa, com os seus alunos, da realização de concursos de problemas e da utilização de materiais manipuláveis, de jogos de reflexão e de quebra-cabeças.
Em 1991-92 uma parte desses professores juntou-se no projecto MATlab - LABORATÓRIOS DE MATEMÀTICA: actividades / desafios / recursos. Na candidatura em que solicitaram o financiamento do Instituto de Inovação Educativa (IIE), afirmaram-se convictos de que a criação nas escolas de “espaços exteriores às aulas” poderia contribuir para que os alunos desenvolvessem “capacidades como a cooperação, o sentido de risco, a elaboração de projectos e estratégias e a definição de valores”, além de melhorar a sua aprendizagem da Matemática. Para tal, propuseram-se como objectivos: “Criar e institucionalizar em cada Escola […] um espaço, a ser utilizado livremente pelos alunos, com condições para a realização de actividades e para a exploração de desafios de carácter matemático (em sentido amplo)”, que permitisse “a interacção com as actividades curriculares” e “a dinamização e integração de iniciativas a nível das comunidades” em que essas escolas se inseriam [ver, sobre os dois primeiros anos deste projecto, os testemunhos «055 e «065»].
Este projecto esteve activo até ao final de 1995-96, ou seja, durante cinco anos, tendo obtido um segundo apoio financeiro do IIE através do InterMAT, um projecto federador de projectos que também esteve associado ao Núcleo da APM [ver o testemunho «079»], além de ter mobilizado, em cada uma das escolas envolvidas, outros apoios logísticos e financeiros.

A organização do MATlab seguiu uma via mais informal que a do projecto AlterMATivas, implementado em 1991-93, que foi um seu projecto gémeo mas centrado no espaço curricular [ver os testemunhos «069» a «073»]: os professores que estavam envolvidos em «clubes de matemática» e em «ludotecas» nas suas escolas, mesmo que não tivessem sido autores deste projecto [ver cronograma incluído no testemunho «097»], reuniam-se numa das escolas envolvidas (de início mensalmente; depois, pouco a pouco, mais espaçadamente), tendo-o cerca de uma dezena feito regularmente ao longo dos cinco anos; a coordenação dos trabalhos começou por ser centralizada, passando a ser tendencialmente rotativa nos últimos anos; e as reuniões centraram-se na formação mútua (sem qualquer preocupação com a “formação creditada”, como por diversas vezes foi assumido), que por vezes incluía a fabricação de jogos, de quebra-cabeças e de materiais manipuláveis, ou a decisão da sua aquisição, além de servirem de apoio logístico entre escolas e, sobretudo durante o 2º período de cada ano lectivo, para a organização dos Interescolas de Jogos de Reflexão [ver os testemunhos «067», «080», «089» e «099»].
A formação mútua destinava-se a explorar as potencialidades educativas dos jogos reflexivos (como o Hex e o Ouri), dos quebra-cabeças (como os Labirintos, o Soma-cubo e o Tangram) e dos materiais típicos de um Laboratório de Matemática (como o Polydron e o Tabuleiro de Galton), sendo para tal procurados diversos apoios bibliográficos (como nos livros de Brian Bolt e nos artigos e livros de Miguel de Guzmán). Alguns dos tópicos repetidamente retomados nestas explorações foram as Dobragens, a Fita de Möbius, o Jogo do Ouri, as Magias, o Numero Pi, as Pavimentações (incluindo as de Escher e as de Penrose), as construções com Polydrons, o Teorema de Pitágoras, o Teorema das Quatro Cores, a Teoria dos Jogos e a Torre de Hanói.

Um objectivo que nunca foi perdido de vista no MATlab foi o da interacção entre as actividades extracurriculares e as curriculares.
Um material inédito concebido no âmbito do AlterMATivas foi o Bilátero Articulado. Sendo um material que podia ser facilmente utilizado em circunstâncias lectivas, o seu estilo de uso era laboratorial, pois permitia a experimentação e, através dos resultados desta, apoiava a correspondente demonstração. A imagem seguinte mostra quatro exemplares deste «material manipulável» (assim são chamados os materiais cuja configuração pode ser alterada manualmente), cada um deles com uma combinação de lados diferente das combinações dos outros:


No livrinho que publiquei em 2003, descrevi assim como a invenção deste material aconteceu “quando quisemos resolver um problema de didáctica para o qual não conhecíamos qualquer sugestão, vinda da experiência de outros professores ou de investigadores: que actividade podem os alunos realizar de modo a concluírem que cada lado de um triângulo não pode ser igual ou superior à soma dos outros dois lados, nem menor ou igual à diferença entre eles?
Depois de discutirmos e rejeitarmos várias ideias que nos surgiram, acabámos por optar por aquilo a que a certa altura chamámos «bilátero articulado». Era formado por dois rectângulos de cartolina, cada qual com um traço ao comprido (simulando o respectivo lado de um triângulo), que estavam articulados de modo a poderem rodar e a formar qualquer ângulo entre os lados que representavam. Após terem sido desenhados, foram cortados e plastificados (para poderem durar mais tempo) e um dos extremos dos lados foi furado para colocar uma peça que os mantinha unidos, mas móveis.

Nas aulas, os alunos formavam grupos, cada grupo em volta de uma mesa (ou de duas encostadas), e todos eram desafiados a dar exemplos das dimensões que o terceiro lado do triângulo podia assumir e a tirar conclusões gerais. Esta estratégia implicava debate dentro de cada grupo e, no fim, debate entre os diversos grupos, cabendo ao professor apoiar os grupos, quando tivessem dificuldades, e moderar activamente o debate final, até que as conclusões fossem claras, assumidas por todos e, claro, correctas.

Durante os cinco anos lectivos em que o MATlab esteve activo apenas dois corresponderam a uma responsabilidade formalmente assumida, em função do financiamento prestado pelo IIE. Nos outros três anos (e de certo modo em todos) o projecto existiu informalmente, dada a convicção dos seus animadores nas suas potencialidades.
Ao longo destes anos o MATlab interveio publicamente com o objectivo de divulgar a metodologia laboratorial no âmbito da Educação Matemática, intervenções que também foram um modo de ir explicitando as preocupações e visões dos seus autores. Várias dessas intervenções foram feitas nos Encontros Regionais de Professores de Matemática (de Almada e Seixal). E as outras (fora destes concelhos) foram: no ProfMAT de 1992 (em Viseu); no ProfMAT de 1993 (Açores); no ESEMAT 94 (encontro organizado pela ESE de Lisboa, em 1994); no ProfMAT de 1994 (Leiria); e no ViseuMat4 (encontro organizado pelo Núcleo da APM em Viseu, em 1996) [ver no testemunho «097» os títulos destas intervenções].

Um dos temas de reflexão no MATlab disse respeito aos Clubes de Matemática e às Ludotecas.
* O que seria preferível, estruturar a organização de cada escola segundo um “sistema aberto” (modelo Ludoteca), ou “fechado” (modelo Clube)?
* Como criar “desafios” que levassem “mais longe as actividades de iniciação”, como, por exemplo, nos jogos (começar pelo “jogo livre”, passar para o “campeonato”, terminar no “inter-escolas”)?
* Que iniciativas comuns a todas as escolas poderiam servir de regularizador das suas diferentes opções (encontros de trabalho, publicações, torneio inter-escolas, ...)?
* No relatório final do primeiro ano do projecto escreveu-se: “É fácil pôr os jovens a jogar, torna-se mais difícil criar situações em que não é só «o jogo pelo jogo» (onde se percebe como se joga e porquê, etc...); mas, mais difícil é aprender fazendo e experimentando, formular hipóteses, testá-las e depois tirar conclusões.

Outro dos temas de reflexão disse respeito ao conceito de Laboratório de Matemática.
* Na intervenção feita no ViseuMat4 foi associada ao Laboratório de Matemática a necessidade de “Recursos, Espaço, Memória, Desafios” e afirmado que os alunos, os professores e os funcionários seriam os seus actores.
* E a distinção que aí foi feita entre Ludoteca, Clube de Matemática e Laboratório de Matemática foi esta:
numa LUDOTECA (com especiais ligações à Matemática): as actividades são principalmente «jogar» e «resolver puzzles»; a participação dos alunos é livre; e não há forçosamente uma relação directa professor-aluno;
num CLUBE DE MATEMÁTICA: as actividades são essencialmente «explorar» e «resolver desafios», entre o lúdico e o estritamente matemático; a participação dos alunos é organizada e fechada; e há uma relação directa professor-aluno;
num LABORATÓRIO DE MATEMÁTICA: as actividades são fundamentalmente «experimentar», e de uma forma sistemática; para o que deverá haver necessariamente uma ligação aos Recursos pedagógicos da Matemática na Escola (Centro de Recursos), sendo naturais as ligações de trabalho quer à Ludoteca, quer ao Clube de Matemática, se estes existirem, bem como às actividades curriculares e outras não-curriculares da Escola, no âmbito da Educação Matemática; o que constitui tanto um desafio novo para os Professores desta disciplina, como um estímulo à institucionalização de novos espaços pedagógicos nas Escolas; e forçosamente estabelece uma relação directa professor-aluno.

* A propósito desta intervenção, foram ainda registados dois argumentos interessantes: “A constante criação de Matemática é feita experimentalmente numa boa parte dos casos; só a formulação final desses casos assume uma feição hipotético-dedutiva […]; para os jovens que aprendem Matemática, esta começa por ser apenas experiência”; e o “jogo de reflexão” pode “ser descrito como um combate entre sucessivas conjecturas, até que algo é demonstrado.


Comentários

Os três projectos interescolas que estiveram associados ao Núcleo da APM foram axiais para o desenvolvimento de uma rede de cooperações entre os professores de Matemática de Almada e Seixal. Entre si, eles apoiaram inovações curriculares e extracurriculares.
O MATlab dispôs da vantagem da maior flexibilidade de objectivos e de meios, à qual se associou um trabalho bastante informal mas convicto.
No entanto, tal como o AlterMATivas [ver o testemunho «073»], não foi capaz de explorar as interacções com as comunidades de pertença dos alunos das escolas envolvidas, apesar dessa intenção ter sido prevista entre os seus objectivos.

A produção e a aquisição de jogos, quebra-cabeças e materiais manipuláveis apetrechou razoavelmente a maior parte das escolas, tendo a elaboração das correspondentes fichas de apoio à sua exploração sido feita por poucos professores, com uma sua parte não negligenciável originária do trabalho um tanto disperso de vários outros; faltou a estas fichas o que foi regularmente feito no AlterMATivas, serem experimentadas e depois analisadas em comum, e essa falta enfraqueceu os esforços de divulgação do conceito de Laboratório de Matemática (melhor do que a «teoria», os exemplos práticos são eloquentes).

Faltou também uma perspectivação a longo prazo dos temas e materiais a explorar no futuro, o que pode ter gerado uma sensação de ausência de desafios que ajudou, no final de 1996, entre outras razões de ordem externa (como as dificuldades colocadas às escolas e pelas escolas), a não prosseguir o trabalho em comum no MATlab.

As reflexões que foram feitas foram sobretudo adequadas para «pôr as coisas a funcionar», mas não foram suficientes para evidenciar uma ligação entre os Laboratórios de Matemática e uma visão pedagógica que lhe servisse de suporte.


Fontes:
Pedro Esteves / Arquivador analógico ESJA Seis (doc.s 65, 72 e 109) / Ficheiros da Tese de Mestrado (4RXPR16, 4RXPR 21 e 4RXPR 25)
Livros e revistas analógicos: Actas de ProfMAT (1992, pp. 191-194; 1993, pp. 159-162); livro de Esteves (2023)