Memórias
Das três entrevistas que realizei, perto do final de 1995, para a minha tese de
mestrado, a feita à Raquel foi a primeira (seguiram-se as
entrevistas ao José Tomás [testemunho «050»] e à Filomena Teles).
A escolha da Matemática, a Faculdade e o
Instituto Geográfico Cadastral
Quando a Raquel concluiu o antigo 5º ano de escolaridade (correspondente ao
actual 9º ano) escolheu seguir Ciências. Depois, ao concluir o 7º ano (actual
11º ano), não tendo manifestado antes qualquer preferência por esta ou por
aquela disciplina, mas por gostar de resolver equações disse para si mesma:
“Bom! Então é Matemática!” E foi esta a escolha que fez para entrar no Ensino
Superior.
Os primeiros anos não lhe correram muito bem, pelo que precisou de ir
trabalhar, tendo entrado no Instituto Geográfico Cadastral como desenhadora
cartográfica. “E então não tinha possibilidade de ir às aulas, não havia nessa
altura - como há agora - ensino pós-laboral, [...] as aulas a que eu conseguia
ir era pedindo ao chefe, mas [...] ele achava que os outros também podiam pedir
para ir fazer não sei o quê e portanto aquilo era sempre uma grande confusão.”
Mas, apesar destas limitações, ainda foi “fazendo umas cadeiras”, sem saber “muito
bem como”.
Um dia, no início de 1972-73, uma sua conterrânea veio ter com ela e
diz-lhe: “«Eh! pá, estou muito triste, o Manel quer que eu vá com ele para a
guerra, para a África, mas eu tenho que deixar um substituto. Não me queres ir
substituir?» [...] E portanto isto foi uma 6ª feira, nunca mais me esqueço, e na
2ª feira estava na Escola, porque ela foi lá e disse «tenho aqui uma pessoa»
[para me substituir].”
A entrada naquela que seria a sua escola
de sempre
A Escola era uma Secção Preparatória Industrial de uma outra, de Lisboa. A
Raquel foi recebida pelo Director, que lhe pôs um “horário nas mãos”, para
ensinar à noite, e lhe disse que tinha de “andar de bata”.
“Comecei a dar aulas um bocado loucamente, jovem e inconsciente, toda aquela gente era tudo mais velho do que eu, [...] naquela altura em que o ensino noturno era de facto para homens, para pessoas adultas, e não como é agora. Portanto a experiência foi muito engraçada porque acho que os alunos adoptam os professores, [...] nessa altura tinha quê? [...] vinte e poucos anos [...]. Portanto, eu comecei a dar aulas assim, sem saber nada, [...] sem haver reuniões de grupo, [...] sem conhecer livros, sem saber os programas, sem saber como funcionava a Escola, sem saber nada, à noite ...”
Como a Raquel preferiu não deixar o Instituto, “das nove às cinco trabalhava na Estrela, depois apanhava o eléctrico e vinha para Almada, de barco, até às onze da noite, às vezes mais!” Mas este esforço era compensado pela grande “cumplicidade” que havia entre os que trabalhavam como ela.No ano seguinte, 1973-74, a Raquel, que gostara do seu primeiro ano com professora, deixou o Instituto. Estrando a leccionar à noite, ficou com tempo para, de dia, regressar às aulas na Faculdade.
Logo após o 25 de Abril uma Assembleia Geral de Escola, para substituir o Reitor, elege, “de braço no ar,” uma Comissão de Gestão, de que a Raquel fez parte. Era necessário fazer “tudo, desde arrumar cadeiras, varrer o chão, pintar paredes ... bom! apanha-se aquela [...] euforia de que é tudo nosso e que portanto temos que fazer tudo”. Assim, a Raquel teve de escolher, “e as aulas foram as preteridas de facto, porque aquilo não dava tempo de fazer tudo”.
Esta Comissão manteve-se até à eleição do primeiro Conselho Directivo, em 1976, altura em que a Raquel voltou a estudar, de dia, e a dar aulas, à noite.
E, ao concluir o bacharelato em Matemática, a Raquel optou pelo ramo educacional: ela sempre tinha gostado de vir a ensinar, “já tinha essa na cabeça, mas [...] depois de experimentar achei que [...] era aquilo!”
O estágio em Lisboa e as aulas em Almada
O ano em que a Raquel fez estágio foi o último em que este não era pago. E por não ser pago, a Raquel foi obrigada a continua a dar aulas em Almada, à noite, depois de estagiar, de dia, no Liceu D. Diniz, nos Olivais. E foi durante este ano que se travaram as lutas que levaram a que mudasse a situação dos estagiários nas escolas: “No ano a seguir as pessoas já foram pagas e já tiveram direito a estar num sítio só”.
“O estágio foi muito engraçado”, contou-me a Raquel. Havia, por um lado, o grupo das estagiárias, que ela já conhecia, e, por outro, um orientador de estágio “retrógrado ao máximo”.
O orientador não dava aulas, eram as estagiárias que, rotativamente, uma semana de cada vez, davam as aulas na turma do orientador: “Fizemos coisas engraçadas, [...] sobretudo com muita alegria e [...] o orientador nunca percebeu o que é que a gente estava a fazer”, ficando “um bocadinho perplexo”, pois era-lhe “impensável” fazer-se qualquer mudança, como os alunos trabalharem em grupo, ou uma aula ser dada simultaneamente por duas ou três professoras.
O que este grupo de estágio fez, comentou a Raquel, só foi possível por se estar “numa situação daquelas, numa situação de grupo”. E foi a partir desta experiência como grupo de estágio que ela se começou a interessar pelos jogos, pelos quebra-cabeças e pelos materiais manipuláveis no ensino da Matemática.
Eis um dos quebra-cabeças que a Raquel divulgou através do projecto MATlab:
Como o grupo de estágio da Raquel quis ajudar a acabar com
os estágios feitos daquele modo, as estagiárias tiveram a ideia de gravar
testemunhos sobre o que os alunos acharam de diferente “na maneira de dar as
aulas e na maneira de abordar as coisas, na postura como as pessoas estavam na
aula - porque aquilo já era depois do 25 de Abril”, e, apesar disso, o
orientador “continuava de bata branca e impávido e sereno de gravata [...], de
óculos, hirto, a dar aulas”.
Definitivamente em Almada
Terminado o estágio, a Raquel foi colocada como professora efectiva na sua
escola de sempre, em Almada. Como um dos membros do Conselho Directivo saíu para se
efectivar no Seixal, a Raquel reentrou na gestão, dando aulas de dia a uma única
turma do 7º ano.
A nova experiência na gestão foi “má”, pois o Conselho Directivo era “muito
conflituoso”, já havia “posições políticas” muito “demarcadas”, mas a
experiência com a única turma foi muito forte, pela “afectividade” que foi
possível desenvolver entre ela e os seus alunos.
Ao deixar este Conselho Directivo a Raquel começou “com aquela mania da Sala de Jogos."
E ela não tinha “dúvida nenhuma”, na altura em que a entrevistei, acerca da
importância que os espaços extracurriculares têm para os alunos. Para ela, “o
espaço fora da aula é um espaço privilegiado para tudo”:
é impressionante “a relação
diferente que há numa aula e num espaço fora da aula, com os mesmos alunos”. “Eu
gostava de perceber o que é que se passa dentro de uma aula que faz com que
duas pessoas, as mesmas, mudem de espaço e tenham uma atitude completamente
diferente, não só em relação um ao outro mas em relação ao próprio trabalho.”
Até a postura física rígida da
sala de aula se quebra, “não há problemas de comportamento”.
A propósito da entrevista que realizei ao José Tomás lembrei-me das duas
primeiras conclusões da minha tese de mestrado. Também me poderia ter lembrado
delas a propósito da entrevista com a Raquel:
Os professores envolveram-se enquanto pessoas na
profissão.
O envolvimento profissional dos
professores apoiou o seu desenvolvimento pessoal.
No caso da Raquel lembro-me ainda de duas outras conclusões, uma
relacionada com a sua «sala de jogos», a outra com os «jogos e quebra-cabeças»
que ela divulgou.
Transcrevo-as por completo:
Os espaços
incorporaram a acção profissional dos professores.
Toda a acção dos professores decorreu num espaço (a
criação de um novo tipo de acção implicou a criação de um novo tipo de espaço)
e interagiu com esse espaço (as mudanças no agir produziram mudanças na
organização e por vezes na designação ou até na localização do espaço). Ao
invés, cada espaço facilitou um tipo específico de acção profissional (a sala
de aula pareceu induzir o método expositivo) e, ao extremo, aceitou apenas
aqueles que promoveram esse tipo de acção (o associativismo local não foi
favorável ao individualismo). A primeira característica revela como os espaços
são sensíveis à acção (e portanto aos seus autores) e a segunda como eles
influenciam a acção (embora não possam ser seus autores). Os espaços, por conseguinte,
tanto são limitadamente moldáveis como passivamente conservadores.
As
ferramentas inscreveram a acção profissional dos professores.
A construção de ferramentas educacionais foi a
acção a que os professores atribuíram a principal prioridade. Sempre que se
verificou, em paralelo, a construção de ferramentas organizacionais, as
potencialidades das ferramentas educacionais (nomeadamente para mobilizar e
articular saberes internos e externos) foram multiplicadas. Uma tendência
notável desta associação foi a sua produção de efeitos sobre os espaços
profissionais: nas escolas, através da constituição de um ambiente favorável à
interligação de iniciativas dispersas e, no associativismo local, através do
desenvolvimento de uma rede de apoios profissionais. Em ambos os casos, recuou
a tradição de estabelecer externamente os objectivos de mudança e cresceu a
categorização interna dos espaços, que passaram assim a constituir marcos para
a identificação profissional (os projectos, a ludoteca, o laboratório, as
realizações inter-escolas, o Núcleo associativo local, etc.). Contrariamente
aos espaços, que operam através do implícito, as ferramentas favorecem a
explicitação dos processos e a exploração das potencialidades.
Fontes: Pedro Esteves /Arquivador
digital Tese de mestrado (4EXPR11) / Livro (Esteves, 1998; ponto VII.1.2.9) /
(fotografia pessoal de um quebra-cabeças)
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