Memórias
Entre Junho e Setembro de 1990, um grupo de professores de Matemática ligados ao Núcleo de Almada e Seixal da Associação de Professores de Matemática decidiu avançar com um projecto comum de leccionação, primeiro ao 7º ano, no ano seguinte, nas mesmas turmas, ao 8º ano, e por fim, ainda nas mesmas turmas, ao 9º ano.Participaram na primeira reunião a Filomena Teles, o José Tomás, a Palmira Barroso, o Pedro Esteves e a Rita Vieira. Na segunda reunião juntaram-se a este grupo a Ana Paula Natal e a Lídia Lourenço. E em Setembro o grupo ficou completo com a Cristina Fonseca.
Em conjunto, estes oito professores iriam leccionar 15 turmas do 7º ano, em 6 escolas secundárias: Anselmo de Andrade; Cacilhas (actual Cacilhas-Tejo); Emídio Navarro; Nº 1 do Laranjeiro (actual Rui Luís Gomes); Nº 2 do Laranjeiro (actual Francisco Simões); e Nº 1 do Seixal (actual José Afonso).
No seu primeiro documento público, «Projecto de abordagem ao programa do 7º ano unificado» (elaborado pelo José Tomás), afirmaram pretender “estabelecer pontes com a reforma curricular”, que estava em vias de se generalizar, apoiando-se em “algumas experiências ultimamente levadas a cabo” (caso do projecto MAT789) e nas “preocupações” recentemente expressas “no âmbito da matemática” e que se podem resumir na convicção de que “a aquisição de conhecimentos, o desenvolvimento de atitudes, o desenvolvimento de capacidades, pressupõem uma atitude activa do aluno na construção do seu «saber», experimentando, conjecturando, formalizando, abordando os problemas sob diferentes pontos de vista.”
Este projecto já tinha estado em gestação entre alguns destes professores, ao longo de 1989-90; e o renovado grupo dos seus autores decidiu designá-lo por AlterMATivas.
Enquanto se começava a trabalhar, o «Projecto de abordagem» foi enviado, em cada escola, ao Conselho Directivo e ao Delegado do Grupo de Matemática, sendo solicitado que fosse aprovado pelo Conselho Pedagógico.
Ao longo de 1990-91, em reuniões plenárias (aproximadamente uma por semana, quase sempre na Anselmo de Andrade, a seguir ao jantar), preparou-se a intervenção pedagógica e organizou-se a generalidade do trabalho.
O que mais ficou na memória foi a elaboração das «fichas» que iriam orientar o trabalho dos alunos. Elas eram propostas e discutidas numa reunião e, logo que estabilizadas, um dos membros da equipa ficava responsável pela elaboração das respectivas versões digitais (tudo era gravado em «disquete». Depois cada ficha voltava ao plenário, onde podia ser de novo modificada.
A primeira «ficha» a entrar numa sala de aula, elaborada pelo José Tomás e pela Rita Vieira, foi o «inquérito aos alunos». Depois seguiu-se uma ficha para iniciar o trabalho sobre «números», elaborada pela Rita:
Utilizando as quatro operações elementares e parêntesis, assim como quatro (e só quatro) vezes o algarismo 3, obtém expressões que representam cada um dos números naturais de 1 a 10, por exemplo:
3 x (3 + 3) -3 = 15.
Penso que usámos uma só aula para abordar este desafio, mas o principal trabalho acabou por ser feito, voluntariamente, em casa. Aí, quase todos os meus alunos participaram com novas soluções (há mais do que uma para cada número), tendo a Jeovata Dayves acrescentado, como graça, uma solução para o 0 (3 + 3 – 3 – 3).
Só que as coisas não ficaram pela primeira vaga de soluções caseiras: espontaneamente, alguns alunos decidiram generalizar o desafio, substituindo o 3, por, 1, por 2, por 4, etc., até 9. Não encontraram soluções para todos os casos, mas encontraram para muitos, começando mesmo a explorar os limites desta «brincadeira» (qual o número maior que é possível obter; quais os números que é sempre possível obter; etc.).
Registei quatro heroínas desta pesquisa: a Sílvia Medeiros, a Eunice Janeiro, a Natalina Veiga e a Sandra Silva, cada qual com dezenas de soluções!
Ao longo deste primeiro ano do AlterMATivas foram produzidas 32 fichas de trabalho para os alunos, sendo algumas actualizações de versões produzidas por um dos membros da equipa no ano anterior, como foi o caso da ficha sobre o «Hex da Multiplicação» (ver o testemunho «038»), um jogo destinado a estimular o uso do cálculo mental.
A Sala de Dinamização Cultural procurou apoiar este projecto, através dos materiais que lá foram disponibilizadoss (casos do «Hex da Multiplicação» e do «Hex da Divisão») e, por sugestão de alguns alunos (nomeadamente do Albano Serôdio), também através da afixação dos desafios mais interessantes, para que outros alunos pudessem participar (o sucesso não foi grande).
Em diferentes reuniões semanais foram abordadas outras questões, quer sobre o trabalho realizado com os alunos, quer sobre as ambições do projecto:
Como trabalhar ao longo do ano as capacidades dos alunos que exigem um desenvolvimento de longa duração?
Como fazer chegar as ideias do projecto aos grupos de Matemática de cada Escola envolvida? a outras Escolas da AP12? a outras Escolas, ou colegas, e à APM? e aos colegas de outras disciplinas, com quem deveremos mais frequentemente dialogar?
De que inspirações teóricas dispúnhamos? (foi elaborada uma lista!)
E, em Abril, a equipa decidiu concorrer ao 3º Concurso Nacional de Projectos Educar Inovando / Inovar Educando, promovido pelo Instituto de Inovação Educacional:
A designação do projecto foi alterada para AlterMATivas - Alternativas no ensino-aprendizagem da Matemática.
Explicou-se que o horizonte temporal era de dois anos, de modo a prosseguir, com as mesmas turmas, o trabalho já realizado no 7º ano.
Definiu-se, como problema de partida, a contradição entre a “rigidez” do espaço-aula e a necessidade que estes professores nela sentiam para corresponder a situações de aprendizagem muito variadas.
Estabeleceram-se três objectivos: (1º) a produção de “materiais estruturados” para o ensino-aprendizagem da Matemática no 3º Ciclo; (2º) a “maior iniciativa [dos professores em relação à] transformação da sua própria profissão”; e (3º) o desenvolvimento de “capacidades” e a criação de “motivação” nos alunos, como resultado de estes estarem no “centro de criação do saber”.
E a metodologia escolhida foi a da “investigação-acção, com mecanismos de correcção dos materiais experimentados numa primeira fase, com confronto entre experiências de diferentes professores e escolas, com mobilização faseada do respectivo grupo disciplinar, com questionamento progressivo das Escolas em relação à assumpção dos projectos que constituem os seus Planos de actividades, com solicitação de apoio dos seus orgãos de gestão e com gradual libertação dos alunos (em trabalho plurianual) para a redifinição das práticas que se desenvolvem no interior da aula.”
A formulação foi muito ousada!
Comentários
A Ana Paula Natal decidiu sair deste projecto no início do 2º período, por preferir trabalhar de acordo com as suas próprias opções.
É possível que a equipa do AlterMATivas tenha andado demasiado absorvida pelo intensíssimo desafio de preparar materiais didácticos, o que implicou ter descurado a apreciação das respostas ao inquérito dirigido aos alunos no início do ano (as escolas envolvidas no projecto eram muito diferentes, podendo os alunos precisar de formas de trabalhar bastante diferenciadas). E também é possível que, no final do ano lectivo, devido à preparação do 1º Encontro Regional de Professores de Matemática, tenha sido essa a razão pela qual a equipa não comparou os resultados escolares finais dos alunos nas diversas escolas (também pode ter havido algum pudor em querer olhar para os resultados do trabalho efectuado pelos colegas, uma forma de lhes dizermos que confiávamos neles).
Dispondo apenas dos resultados escolares das minhas três turmas, que posso hoje dizer sobre eles?
De todos os alunos matriculados nestas turmas, 62 alunos foram avaliados pelo menos uma vez, tendo 10 sido, algures no 2º ou no 3º período lectivo, excluídos por faltas, e os outros 52 terminado o ano escolar. A percentagem da «exclusão por faltas» entre estes 62 alunos foi um pouco superior a 16 %.
Dos 52 alunos que terminaram o ano lectivo e, portanto foram avaliados no final do 3º período, 11 foram reprovados; a percentagem de «reprovação» entre estes 52 foi um pouco superior a 21 %.
Assim, o «insucesso escolar» (igual à soma da «exclusão por faltas» mais a «reprovação», ou seja, 21 alunos em 62) foi quase igual a 34 %.
Houve ainda diversos outros alunos que se inscreveram e que nunca apareceram, ou que apareceram apenas numa ou noutra aula, tendo alguns deles, a dada altura, declarado «anular a matrícula»; e outros nem isso fizeram. Não se pode dizer que tiveram «insucesso escolar», pois o 3ª Ciclo ainda não era obrigatório em 1990-91.
O que aconteceu na disciplina de Matemática aos 52 alunos que terminaram o ano lectivo não foi brilhante: reprovaram 13 alunos, ou seja 25 %, acima dos 21 % de reprovações verificados nas três turmas.
Houve, além da Matemática, pelo menos mais duas disciplinas que contribuíram com um insucesso acima dos 21 %, as Ciências da Natureza e o Português. Entre os 11 alunos que reprovaram o ano, 7 reprovaram a Matemática, todos a Ciências e 8 reprovaram a Português.
A distribuição dos níveis finais atribuídos por estas três disciplinas proporciona uma ideia mais ampla acerca dos resultados do trabalho feito por estas três disciplinas:
Além de alguma perplexidade acerca do que se terá passado
com a disciplina das Ciências, esta tabela mostra ter havido uma grande
semelhança entre os resultados escolares a Matemática e a Português, com uma só
diferença relevante: a distribuição dos níveis «3» e «4» foi mais generosa no
caso da Matemática.
Estes dados sobre os resultados escolares no final do 1º ano do projecto AlterMATivas
na minha escola antecipam o que viria a ser a conclusão tirada pelos
professores que nele estiveram envolvidos nas várias escolas, após os três anos
que ele durou: continuavam a existir bastantes «negativas», surgiam melhorias
nos «níveis médios» e talvez não se sentissem melhorias nos «níveis mais
elevados».
Mas porquê o sucesso tão limitado deste projecto, pergunto-me eu hoje?
A principal pista para responder a esta questão apoia-se na minha convicção de
haver alunos que necessitam de conteúdos, de ambientes e de formas de trabalho
muito diferentes para aprender. Como as turmas são constituídas por uma mistura
dessas diferenças e como a escola se organiza por turmas, os alunos agrupados
em cada turma são obrigados a aprender segundo um mesmo estilo pedagógico, pelo
que haverá quase sempre alunos que não se sentem suficientemente motivados por
ele.
Por exemplo, as fichas de trabalho que a equipa de projecto desenvolveu visavam
a «experimentação matemática» dentro da sala de aula (ou em casa), por vezes
com o auxílio de uma calculadora, sendo os resultados registados sempre numa
folha de papel; isso pode ser adequado para alunos que gostam de um tipo de
trabalho mais prático, e frequentemente divertido; em ambiente fechado; mas outros
alunos podem precisar de ambientes mais abertos, onde o que se passa no mundo
se mistura com aquilo que a escola lhes pretende trazer. A filosofia pedagógica
do MUED, uma associação alemã de professores de Matemática, é essa: estabelecer
ligações entre a Matemática e a Realidade através das implicações dos Alunos em
relação a ambas, de modo a que a sua autonomia pessoal e a sua responsabilidade
social se desenvolvam.
Parece admissível colocar a hipótese de a equipa do projecto AlterMATivas não
ter arriscado o suficiente para além das ideias interessantes, mas demasiado
fechadas na Matemática, que inspiraram uma boa parte da sua estratégia de
trabalho com os alunos. Para ajudar a pensar nesta hipótese, pode ser
inspirador pensar na seguinte afirmação do filósofo das ciências, Karl Popper: “a nossa pedagogia consiste em sobrecarregar as crianças com
respostas, sem que elas tenham colocado questões, e às perguntas que fazem não
se presta atenção”.
Fontes:
Pedro Esteves / Arquivador analógico ESJA Três (Doc.s 1, 9, 11, 18, 99, 100 e
101) / Livro (2023; pp. 24 e 161-162)
Livro: Popper, em diálogo com Lorenz (1990)
Afinal tenho alguns resultados sobre o «sucesso escolar» no primeiro ano deste projecto: ver testemunho «069»
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